OUTRAS ECONOMIAS ATRAVÉS DAS CADERNETAS AGROECOLOGICAS NA AMAZÔNIA

Luciane Soares Beatriz da Luz Cruz Jaqueline Felipe dos Santos
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

A Caderneta Agroecológica – CA é uma metodologia inovadora e tem como objetivo entender e valorar a contribuição do trabalho das mulheres nas experiências agroecológicas protagonizados por elas, identificando a contribuição delas para a segurança alimentar e aporte econômico para a família.
Para entender a CA, é necessário trabalhar com outra perspectiva da economia, que vai além da esfera do mercado e da divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo. A divisão sexual do trabalho está na base da reprodução material que sustenta a sociedade. Separa e hierarquiza o trabalho de homens e mulheres. O desafio foi entender desde uma perspectiva econômica e descolonizadora, como e quanto o trabalho delas aporta para a economia familiar. Neste sentido a análise econômica apoiou-se em autoras que incluem outros elementos nas contas da economia tradicional (Mies, 2019; Federici, 2019; Moreno, 2014; Faria y Nobre, 2002).
Para entender esta outra forma de trabalhar a economia foi necessário questionarmo-nos sobre a divisão capitalista entre trabalho doméstico privado (trabalho reprodutivo) e trabalho público e produtivo (trabalho assalariado), ou trabalho e não trabalho (Mies, 2019). Questionamo-nos: por que, por exemplo, o trabalho doméstico das mulheres não é considerado como uma categoria de valor? Porque o trabalho doméstico não aparece nos modelos matemáticos da economia? Para se entender esta outra forma de calcular a economia foi necessário considerar primeiramente que, não há trabalho produtivo sem que antes exista o trabalho reprodutivo.
O trabalho reprodutivo desenvolvido pelas mulheres envolve múltiplas atividades que elas executam e que garantem a funcionalidade familiar e social, e que requer tempo para serem executadas, são tarefas que no senso comum são “destinadas” socialmente como tarefas de mulheres.
Podemos enumerar estas atividades invisíveis: como o trabalho doméstico, o trabalho afetivo (com filhos, animais de estimação), trabalho de cuidado (com familiares doentes, com os mais velhos), o trabalho com a criação de pequenos animais como galinhas, porco, patos, etc., trabalho no preparo da alimentação familiar, trabalho em pequenas hortas de ervas e plantas que enriquecem os alimentos consumidos pela família, trabalhos comunitários nas escolas, centros comunitários, associações, trabalhos religiosos, entre outros.
É neste sentido que as mulheres agricultoras agroecológicas, realizam na esfera privada uma quantidade múltipla de trabalho que contribui de forma decisiva para que os homens possam aceder ao trabalho público e produtivo, na agricultura geralmente este é representado pela produção principal de uma propriedade.
Historicamente as questões em torno da contribuição feminina na economia, tem início na europa, principalmente nos escritos de Mariarosa Dalla Costa, 1972, Italia (El poder de las mujeres y la subvención de la comunidad) e no trabalho de Selma James (El lugar de la mujer, Mies, 2019). De acordo com estas teóricas, nós mulheres ficamos durante muito tempo restritas as atividades familiares, nucleadas à família, e nosso trabalho invisibilizado social e economicamente, e definidos sob os conceitos de amor, cuidado, afetividade, maternidade e conjugalidade (p. 84. Mies, 2019).
É neste sentido que a CA pensada desde uma economia feminista, contabiliza o trabalho produtivo e reprodutivo da mulher, utilizando categorias iguais para homens e mulheres, e buscou-se desta maneira outras formas de praticar a economia, mais centrada em uma visão da sustentabilidade da vida e do planeta, dos agroecossistemas e da qualidade de vida das mulheres.
Na agricultura o uso do tempo é relativamente mais complexo que na vida urbana, porque os tempos de produção da natureza são distintos dos tempos do relógio, ou seja, apesar das inúmeras tentativas do mercado capitalista em dominar o tempo da natureza através do uso de diferentes técnicas como o uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos, biotecnologia, transgênicos, etc. as evidencias mostram consequências insustentáveis a longo prazo.
A CA é uma metodologia qualitativa criada pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia – GT mulheres da ANA e é um instrumento que apoia na administração produção, onde considera-se apenas as atividades que resultam do trabalho da mulher.
Figura 1. Modelo de Caderneta Agroecológica-CA.


No Norte brasileiro a pesquisa foi coordenada pela Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia – RMERA, na qual a FASE Amazônia e o Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense fazem parte.
Figura 2. Mapa de localização dos estados do Norte e da Amazônia brasileira.

A CA foi trabalhada inicialmente por 88 mulheres, e durante o desenvolvimento do projeto no primeiro ano. A CA foi monitorada entre os meses de março/abril de 2017 até março de 2018.
Foram realizados cursos, atividades de campo, observações participante, encontros e intercambio de saberes e reflexão, mapas mentais da propriedade, visitas técnicas e uma pesquisa socioeconômica. Estas metodologias participativas proporcionou importante intercambio de práticas e tecnologias agroecológicas, e propiciou que elas se tornassem investigadoras do resultados de seu trabalho.
A CA contribuiu para a valorização do trabalho das mulheres e tornou-se também um importante instrumento de mobilização política porque se desenvolveu através de trabalhos coletivos e processos de planejamento. A CA está estruturada em quatro colunas com as categorias de Consumo, Venda, Intercambio e Doações.
Os resultados encontramos mostram que os principais mercados e circuitos curtos de comercialização são as feiras agroecológicas e ou convencionais, e a venda na própria comunidade. Um total de 47% delas consomem o que produzem.
O monitoramento da produção mostrou que 50% do que elas produzem é para autoconsumo, 29% é destinado para venda, e 18% são destinamos para doação, seja para escola local, para centros comunitários ou igreja. Apenas 3% do que produzem são utilizados na trocas com outros produtos ou serviços. Uma das dificuldades durante o processo de preenchimentos da CA foi o de valorar monetariamente o trabalho de troca e doação, como o caso de trabalhos coletivos, principalmente porque não são somente trabalhos medidos em horas trabalhadas, existem também relações de parentesco ou amizade.
A produção delas em valores monetários mostra que cerca de 60% do que produzem são para autoconsumo, 28% são recursos das vendas da produção e 9% são doações, apenas 3% são valores de troca. Neste sentido fica evidente que a produção delas tanto em produtos como em valores são destinados para a família, e isto mostra também a importância da contribuição do trabalho delas para a reprodução familiar.
No estado do Pará por exemplo, os produtos mais consumidos pelas famílias foram o açaí (Euterpe oleracea) e a farinha de mandioca (Manihot esculenta), produtos que são a base da alimentação da maioria dos camponeses no estado. Um produto que recebeu destaque foi o “beiju” (uma espécie de tortilha fina de farinha de mandioca) que aparece como um dos principais produtos que elas vendem.
O Piquiá (Cariocar Villosum), o bacuri (Platonia insignis) e a castanha do Pará (Bertholletia excelsa) frutas típicas da região, são espécies perenes que aparecem com muita frequência na coluna de consumo da família, isso mostra que a importância que elas dão para espécies perenes e que levam mais de 10 anos para dar frutos.
É notável também a enorme biodiversidade dos espaços manejados por elas, algumas mulheres trabalham com mais de 150 espécies, são flores, ervas medicinais, fruteiras, hortaliças, pequenos animais, produção de alimentos e artesanato.
Estes espaços garantem um lugar agradável ao redor da casa, uma proteção do solo, alimentação rica e diversa, e aporte financeiro para a família. Garantem também a guarda de conhecimentos tradicionais no uso das ervas medicinais.
Através do trabalho desenvolvido com as CA as mulheres foram incentivadas a se auto-organizarem em grupos/coletivos para estudar sobre feminismo e ampliar processos de organização da produção tanto em relação diversidade quanto na quantidade com foco na soberania e segurança alimentar e na geração de renda.
Bibliografia
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FARIA, N. NOBRE, M. 2002. Economía Feminista. Cadernos Sempre viva – Sempre viva Organização Feminista. São Paulo.
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MIES, M. 2019. Patriarcado y Acumulación a Escala Mundial. Ed. Traficante de Sueños Mapas. Trad Paula Martiz Ponz y Carlos Fernandez Guevos. Madrid, Espanha. 434 p ISBN 978-84-949147-6-8.
MORENO, R. (ORG.). 2014. Feminismo, Economia e Política. Debates para a Construção da Igualdade e Autonomia das Mulheres. As desigualdades de Género nos usos do tempo. SOF Sempre viva Organização Feminista. São Paulo, Brasil. 160 p.
NETO. A. A. L. 2015. Caderneta Agroecológica Empoderando Mulheres, Fortalecendo a Agroecologia. Revista Agriculturas v. 12 – n. 4.