Dossiê Maio 2025: Jaraguá é Guarani!

Dossiê Maio 2025: Jaraguá é Guarani!
De Tilia Götze
O Jaraguá está localizado ao norte da cidade de São Paulo e os Guarani Mbya vivem lá há décadas. Atualmente, existem oito Aldeias: Pyau, Itakupe, Yvy Porã, Ita Endy, Ita Vera, Ytu e Pindo Mirĩ, onde vivem cerca de 666 pessoas. De fato, os relatos mostram que os indígenas viviam ali antes da colonização. Na década de 1960, famílias da Aldeia Rio Branco, em Itanhaém, no litoral sul do estado de São Paulo, voltaram a se instalar no local. Desde então, mais e mais famílias têm chegado e estão em constante conflito com os governos municipal e federal sobre o reconhecimento legítimo da terra em termos de demarcação.
Várias etapas devem ser seguidas antes que uma área indígena possa ser demarcada: Primeiramente, a área é identificada e demarcada por uma equipe da autoridade indígena FUNAI. Em seguida, eles enviam um relatório sobre suas descobertas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que avalia o relatório e, se necessário, emite uma decisão de reconhecimento. Uma vez tomada essa decisão, a FUNAI inicia a demarcação física da área usando marcos, como placas. Em seguida, o Ministério revisa novamente o processo e o encaminha à Presidência da República. Na quinta e última etapa, o Presidente faz o registro na Secretaria Pública da União (SPU) e no Cartório de Registro de Imóveis. Isso finaliza a demarcação e a comunidade indígena em questão passa a ter o direito exclusivo de usar a terra.
Foto: 30.08.2017, Eduardo Figueiro / Midia NINJA CC BY-NC-SA 2.0.
Lutas indígenas em uma entrevista com Adriano Sampaio
Adriano mora perto de Jaraguá e está trabalhando com os Guarani para renaturalizar os cursos de água na área indígena. Em junho de 2024, ele fala sobre as lutas pela terra e as estratégias dos povos indígenas durante uma visita à área:
T: Como começa a história dos Guarani no Jaraguá?
A: O Pico do Jaraguá foi um dos primeiros lugares a ser colonizado quando Portugal invadiu a região. Esse foi o primeiro lugar onde o ouro foi extraído. As primeiras pessoas a serem escravizadas aqui foram os povos indígenas que viviam aqui. Eram grupos étnicos diferentes. Alguns ficaram para lutar, outros foram escravizados e muitos fugiram. Em 1961, Dona Jandira, que é Guarani, voltou para cá com sua família. Eles reconstruíram suas aldeias ao redor da montanha.
T: Que lutas pela terra você acompanhou?
A: Desde a minha chegada aqui, participei de muitas lutas. Em 2014 e 2015, as nascentes e os sítios arqueológicos dessa área foram oficialmente registrados pela cidade. Posteriormente, essa área - a Aldeia Itakupe - foi construída em um esforço conjunto. Isso envolveu tanto os Guarani quanto muitas pessoas de fora, que vieram para trocar ideias e aprender juntos.
Foto: 15.09.2017 Romerito Pontes, CC BY 2.0
Em 2015, foi aprovada uma resolução estipulando que os povos indígenas deveriam deixar a área. Em seguida, usamos todos os meios disponíveis para apoiar a luta dos Guarani e tomar medidas contra isso. Foi realizado um encontro na aldeia com mais de 200 pessoas, incluindo jornalistas de todo o mundo, para apoiar a luta dos Guarani. Eles fotografaram as placas com os dizeres “Jaraguá é Guarani, Demarcação já” e compartilharam as imagens nas mídias sociais. Dessa forma, a causa Guarani tornou-se amplamente conhecida, o que avançou decisivamente a luta pela demarcação e levou ao primeiro passo para a demarcação.
Após seu sucesso em 2015, o Ministro da Justiça da cidade retirou a decisão de reconhecimento em 2017. Os Guarani então se organizaram e convidaram representantes indígenas de todo o Brasil para apoiá-los em sua luta - incluindo Tupi Guarani, Krenak, Tupinambá, Pataxó e Kaingang.
O plano era ocupar o parque estadual e desligar as antenas no sagrado Pico do Jaraguá. Participaram cerca de 300 indígenas.
Eles subiram pela floresta antes do nascer do sol, embora ela seja controlada por guardas armados. Mas quando eles viram os indígenas com suas pinturas, flechas e gritos de guerra, fugiram. Aos pés da antena há um prédio de três andares, cada andar responsável por um sinal diferente - televisão ou telefone celular. Eles ocuparam o prédio e esperaram que o governo reagisse. Pediram aos técnicos que estavam no local que deixassem as instalações. No entanto, mais tarde a polícia alegou que os indigenas haviam sequestrado pessoas. Na verdade, algumas pessoas tinham medo dos indígenas e se trancaram, por puro medo. Mas os indígenas não são violentos.
A polícia estava esperando no sopé da montanha e começaram as negociações com o governo municipal e as forças de segurança. Mas ninguém veio do lado do governo. Por isso, desligaram os sinais de TV e fecharam tudo. De repente, mais de um milhão de pessoas na cidade ficaram sem televisão e sem sinal de celular.
Foto: 15.09.2017 Romerito Pontes, CC BY 2.0
Ficaram lá em cima por três dias. Muitas pessoas os apoiaram e trouxeram alimentos. A polícia os deixou passar porque a área agora era controlada pelos indígenas. Havia alguns que queriam entrar em conflito com a polícia. Por fim, o governador de São Paulo enviou representantes, dos setores de segurança e meio ambiente.
No final, deixaram o local pacificamente. Não destruíram nada, apenas desligaram os dispositivos. Chegaram a um acordo: Os indígenas o assinaram junto com a secretaria de segurança. O acordo garantiu que nenhum dos envolvidos na ação seria criminalizado. Portanto, não tiveram que temer ser presos como terroristas. Do ponto de vista, a ação não foi terrorismo - não fizeram mal a ninguém.
T: O que aconteceu depois com a demarcação?
A: A ação recebeu muita atenção da mídia, inclusive internacional. Os indígenas foram autorizados a ficar e a FUNAI começou a demarcar a terra com placas. Faltava apenas o último passo, a assinatura da presidência. Naquela época, Dilma Roussef, do PT, foi afastada do cargo e Temer assumiu a presidência. Nem ele nem Bolsonaro demarcaram um único território indígena durante o período em que estiveram no cargo. É por isso que o processo está se arrastando por tanto tempo; a demarcação deveria ter acontecido há muito tempo.
T: O que mudará para os povos indígenas como resultado da demarcação?
A: Assim que a área for oficialmente demarcada, os Guarani terão direito ao apoio do Estado. Até o momento, eles não têm acesso nem mesmo à água municipal. É por isso que eles obtêm a água da nascente local. Eles também não têm direito à eletricidade, que obtêm por meio de linhas improvisadas na rua - isso é chamado de “gato”.
As atividades econômicas, como a garimpagem de ouro, destruíram o meio ambiente e o riacho secou, o que significa que os indígenas não podem mais viver da pesca tradicional. As pessoas da cidade jogam seu lixo na área, às vezes até mesmo diretamente em frente à aldeia. Os cães que a população urbana não quer mais também são levados para a periferia da cidade e, portanto, para a área indígena. Eles ficam lá, se multiplicam e podem se tornar perigosos para as pessoas.
Com a demarcação, os atuais proprietários de casas no bairro também teriam que deixar a área. Desde que moram aqui, eles têm sido repetidamente atacados por grupos violentos enviados por proprietários de terras na área ou pelo lobby imobiliário. Muitas pessoas que moram no bairro têm fortes preconceitos contra os indígenas. No início, eu sempre conversava com os moradores locais. Eles não conhecem a realidade da vida dos indígenas e não entendem como eles são importantes para todos nós.
Os povos indígenas representam apenas cerca de 5% da população mundial, mas protegem cerca de 80% da biodiversidade global. Estou convencido de que, se um dia nosso planeta entrar em colapso, os povos indígenas serão os únicos sobreviventes. Eles sabem como viver na floresta e como cultivar seus próprios alimentos.
T: Como a relação dos povos indígenas com a terra é diferente da das sociedades ocidentais?
A: Os povos indígenas têm uma visão completamente diferente do mundo e estabelecem prioridades diferentes. O que conta para eles não é o que possuem em suas casas, mas como a natureza está se comportando em sua área. Se um rio está poluído ou envenenado, eles são os primeiros a cuidar dele.
Para eles, a água da terra é como as veias de nosso corpo - vital. Todos nós deveríamos estar cientes de que o rio em nossa vizinhança está poluído. Mas muitas pessoas nem sequer se dão conta disso. Vivemos em um sistema que nos mantém passivos - na frente da TV, na frente da tela - de modo que não percebemos o que está acontecendo no mundo.
Tudo é compartilhado entre os povos indígenas: Os alimentos que são colhidos, assim como a alegria e o carinho. Se alguém está doente, toda a comunidade cuida dele. Mesmo as crianças nunca estão sozinhas - na aldeia, todos são responsáveis por elas.
Os mais velhos são as pessoas mais importantes da comunidade. Eles recebem do maior respeito porque preservam o conhecimento e a sabedoria da comunidade.
Demarcação - Jaraguá é Guarani
Em Jaraguá, uma área de 1,7 hectares foi reconhecida pela primeira vez como território indígena em 1987. Era o menor território indígena do Brasil e de forma alguma abrangia toda a terra que os Guarani habitavam e cuidavam. Em 2013, a FUNAI ampliou o reconhecimento e, em 2015, finalmente expandiu a área para 532 hectares e um primeiro acordo foi firmado entre os Guarani e o governo federal. Esse acordo foi baseado em evidências de assentamentos tradicionais e na importância da região para a preservação do Nhandereko, o modo de vida dos Guarani. No entanto, a etapa final da demarcação não ocorreu naquele momento, pois o acordo e a demarcação da terra foram cancelados pelo governo em 2017.
De acordo com o antropólogo Daniel Pierri, assessor da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), esse é o único caso conhecido de uma chamada “ordem de demarcação” em todo o país. “O Ministro da Justiça da época simplesmente suspendeu os procedimentos administrativos em andamento - sem justificativa e sem tomar as medidas legais necessárias. Foi um decreto arbitrário e politicamente motivado que anulou a decisão de 2015”, diz Pierri. Isso levou à ocupação do satélite que Adriano Sampaio descreve na entrevista.
Um ponto de discórdia em relação à demarcação entre os Guarani e a cidade de São Paulo sempre foi a sobreposição do território indígena com o parque estadual do Jaraguá em 308 hectares, ou 58% da área. Um dos argumentos do governo foi a preocupação com a conservação da natureza no parque estadual. Para a acadêmica e consultora de direitos humanos Claudine Melo, esse argumento mostra que o governo não entende a relação dos povos indígenas com a terra. Conforme descrito acima, muitas fontes mostram que as terras indígenas e especialmente demarcadas são mais bem preservadas e protegidas do que qualquer outra terra. Adriano Sampaio também suspeita que o lobby do setor imobiliário em São Paulo influencia e exerce pressão sobre a atitude da cidade em relação às terras indígenas.
Os Guarani continuaram a fazer campanha pela demarcação de forma organizada e, sete anos depois, em outubro de 2024, deram o próximo passo. O Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob o comando do ministro Lewandowski, reconheceu sete terras indígenas no estado de São Paulo, de modo que todas as sete só precisavam da assinatura do presidente. Um deles é o Jaraguá.
Foto: Tilia Götze, Junho 2024
O Jaraguá foi o primeiro dos sete territórios a finalmente ser demarcado pela presidência brasileira no início de maio de 2025. A área de 532 hectares é equivalente a 760 campos de futebol. O acordo de 2015 foi revisitado, o que significa que o governo federal está comprometido com a melhoria das casas existentes das comunidades indígenas e com a devolução da terra indígena de Jaraguá. Os invasores não indígenas serão removidos da área pelo governo e, com essa desocupação, os indígenas terão garantida a propriedade permanente e o uso exclusivo de suas terras - direitos consagrados no artigo 231 da Constituição Brasileira.
Devido à sobreposição com o parque estadual, também foi celebrado um acordo entre os Guarani, a prefeitura de São Paulo e a fundação florestal para a gestão do parque (PES). O acordo regulamenta a gestão conjunta das áreas sobrepostas, o uso sustentável dos recursos, a proibição da caça e a autorização para o uso da água para abastecer as aldeias. Também garante a liberdade de circulação dos povos indígenas na área e prevê o treinamento contínuo de guardas florestais e bombeiros indígenas.
Em 8 de maio, a demarcação do território foi celebrada com uma cerimônia na Aldeia Tekoa Pyau. Estiveram presentes líderes indígenas do território Jaraguá, bem como representantes de outras comunidades Guarani do Litoral Norte de São Paulo e do Paraná. Também participaram representantes de várias autoridades federais e estaduais, incluindo a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, além de representantes da Agência de Assuntos Indígenas (FUNAI), do Ministério Público Federal (MPF), da Advocacia Geral da União (AGU) e do TRF.
A Ministra Sonia Guajajara enfatizou que os governos federal, estadual e municipal compartilham a responsabilidade de permitir que os povos indígenas vivam com dignidade. Ela enfatizou que a demarcação do território indígena do Jaraguá só foi possível com a comprovação de que os Guarani viviam tradicionalmente nesse local há séculos. “O fato de estarmos em uma grande metrópole não apaga essa memória e não nos tira o direito a essa terra. Os povos indígenas fazem parte desse espaço urbano que é a cidade de São Paulo e seus direitos continuarão a ser protegidos aqui”, explicou.
A jovem comunicadora indígena Samara Pará Mirim enfatizou a importância de estabelecer as bases para um futuro seguro e habitável para os Guarani. O compromisso com seus direitos é uma preocupação coletiva que vai além das necessidades da geração atual - trata-se de garantir espaço e perspectivas para as gerações futuras em longo prazo. O posicionamento dos povos indígenas na celebração deixa claro que as lutas indígenas não terminam quando a demarcação é alcançada.