O COMBATE À DESINFORMAÇÃO É DE LONGO PRAZO

Sergio Amadeu da Silveira
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

No Brasil, a desinformação foi convertida em política oficial de governo. O presidente Jair Bolsonaro utiliza o aparato comunicacional da Presidência da República e de diversos Ministérios para atacar e deslegitimar educadores, cientistas, médicos, jornalistas e defensores dos direitos humanos. Além disso, as redes de disseminação de informações falsas de sua campanha presidencial permanecem atuando e semeando o discurso de ódio nas redes sociais. A estratégia política de Bolsonaro tem na desinformação seu elemento central. Entre diversos ataques à lei de transparência das informações governamentais, Bolsonaro tentou omitir os dados do número de mortos e de contágios do novo coronavírus ao interferir diretamente no Ministério da Saúde nomeando um General para a pasta.

O processo de desinformação envolve desde a fabricação de notícias falsas, a negação de estudos e evidências científicas, a descontextualização de acontecimentos, a criação de boatos e a afirmação de crenças e opiniões não confirmadas pela realidade. Sua origem conhecida é o próprio discurso presidencial em suas lives nas redes sociais, em especial, no Youtube, e seus vídeos curtos distribuídos pelo Whatsapp. Soma-se à desinformação oficial, a tropa de elite bolsonarista que envolve seus três filhos parlamentares, Ministros e assessores presidenciais, alguns youtubers, publicitários, empresários, pastores e deputados, próximos à família do presidente, que atuam de modo ora coordenado ora individualizado, a depender dos temas e do momento político.

Entretanto, existe uma rede distribuída obscura, com sua dinâmica parcialmente conhecida, que envolve centenas pessoas que recebem recursos para produzir e alastrar informações distorcidas, descontextualizadas ou simplesmente falsas. Essa rede é provavelmente financiada pelo núcleo duro bolsonarista, por gabinetes de deputados ligados ao presidente e por empresários que têm na figura de Bolsonaro seu ‘il Duce’. A rede bolsonarista utiliza fartamente o Whatsapp para criar ondas de desinformação e para atacar os inimigos principais do momento. Aqui é preciso ressaltar que o bolsonarismo atuou até o momento com a mobilização permanente de sua base mais radical contra o inimigo da vez. Não atuam para unir o país em torno de uma política pública, mas para destruir os desafetos que imediatamente são definidos como contrários aos “homens de bem”, perigosos para a fé em Deus, para a defesa da família e da pátria. A prática discursiva bolsonarista também rotula quase todos os oponentes de “marxistas”, “comunistas” ou “corruptos”.

O padrão de comunicacional bolsonarista é fortemente inspirado na perspectiva da direita alternativa norte-americana (alt-right). Um exemplo é o tratamento dado à pandemia. Primeiro, Bolsonaro fez de tudo para evitar o isolamento social. Nomeou a covid-19 de “gripezinha”, participou de aglomerações, incentivou as “carreatas da morte” promovidas por empresários negacionistas. Disse que morria mais gente de homicídio e de Aids do que do novo coronavírus. Contra todas evidências científicas ordenou a distribuição de cloroquina. Com a evolução das mortes, mudou o discurso e afirmou: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre". Ao enfrentar pedidos de impeachment e denúncias de genocídio, Bolsonaro e o gabinete do ódio passa a dizer que o STF não o deixou enfrentar a pandemia. O cinismo e a incoerência é componente estrutural do padrão.

Outro exemplo do padrão bolsonarista ocorreu com o debate sobre o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica, Fundeb. Bolsonaro e Paulo Guedes, fizeram de tudo para reduzir os recursos do Fundeb, mas amargaram uma derrota literalmente acachapante. Somente seis deputados votaram com Bolsonaro. Quatrocentos e noventa e dois deputados votaram contra a proposta governamental. No dia seguinte, orientado pelos generais, o presidente disse que o Fundeb tinha sido uma vitória de seu governo. O padrão é o mesmo no caso do auxílio emergencial. Bolsonaro não queria entregar nada, convencido pelos Ministros militares, passou a defender 200 reais. Teve que aceitar 600 reais. No dia seguinte, as redes bolsonaristas espalhavam que Bolsonaro tinha criado o auxílio emergencial. O modelo bolsonarista é típico das ações militares em uma guerra. O importante não é o que ocorreu, não são os fatos, mas a capacidade de lançar uma versão desvirtuada, mentirosa, faz parte do combate. O importante é confundir o inimigo, impor baixas morais nos adversários, tergiversar e dissimular. Para ganhar a guerra é preciso controlar a informação.

No Brasil, a chamada doutrina Breitbart1, "a política está à jusante da cultura", defendida por Steve Bannon, encontrou generais entreguistas capazes de executá-la, mesmo quando Bolsonaro e seus filhos se atrapalham. Os estrategistas da alt-right e do bolsonarismo pensam que é preciso mudar a cultura, alterar os valores para mudar a política. Para isso, a desinformação é estratégica. A extrema direita quer destruir o debate racional baseado em fatos para enaltecer os valores conservadores e os elementos mais retrógrados do senso comum. Organizam o medo, o preconceito, a inveja, os afetos tristes para confirmar valores que exaltam a hierarquia social herdada da sociedade escravocrata, a desigualdade como fonte do progresso, a supremacia branca, patriarcal e das elites econômicas. As ondas de desinformação são fundamentais, tal como a mobilização permanente da base extremista contra o inimigo da vez. Essas ondas não precisam guardar nenhuma coerência, devem gerar confusão, ofertar argumentos para todos os seguidores, turvar a visão, suspender a realidade e fazer prevalecer os valores conservadores. Por isso, Bolsonaro defendeu, na reunião ministerial de 22 de abril, “armar o povo”. Sua adesão à democracia é provisória. Acreditam que manipulando os preceitos retrógrados terão como vencer pela violência.

Mas a extrema direita brasileira não é somente bolsonarista. Existem os extratos lavajatistas que se estendem até a centro-direita. O neoliberalismo une esse espectro político que vai dos donos da Rede Globo até os demotucanos, incluindo o ex-presidente FHC e o atual presidente da Câmara Rodrigo Maia. O ponto de intersecção dessas forças se dá nas propostas de Paulo Guedes de “apoiar os grandes”, ou seja, o capital financeiro, as corporações transnacionais, privatizar todas as empresas estatais, reduzir ao máximo o serviço público prestado diretamente pelo Estado, sufocar as universidades públicas, implementar a previdência privada, reduzir ainda mais os direitos trabalhistas que restaram, entregar o petróleo, enfim, transformar o Brasil em um anexo de Miami.

Todavia, em meio à crise sanitária as manifestações antifascistas tomaram as ruas de diversas cidades. Das torcidas organizadas veio o exemplo cabal que a democracia será defendida pelos jovens negros das periferias. Em paralelo, rompendo o discurso de que o sindicalismo não teria mais espaço no mundo das plataformas digitais, o precariado se levanta em uma improvável organização dos entregadores urbanos e motoboys na greve chamada de #brequedasapps, a revolta contra a hiperexploração do trabalho. O cinismo neoliberal de chamar os trabalhadores uberizados de “empreendedores” começou a ser fortemente combatido. Nas redes digitais, apesar da gestão algorítmica das plataformas norte-americanas tenderem a privilegiar os perfis e canais da direita e da extrema direita, altamente monetizados, os movimentos sociais, as feministas, o MST, os movimentos de ocupação urbanos estão cada vez mais atuantes e capazes de construir redes de solidariedade e de ação virtual-presencial.

Tudo indica que o embate contra as forças neofascistas – que adquiriram a hegemonia no atual cenário do pensamento neoliberal – será tenso e não se dissipará por um longo período. Nessas eleições municipais, as contradições entre as forças neoliberais se acentuarão. O centrão, os demotucanos continuarão engavetando os pedidos de impeachment de Bolsonaro que cada vez mais tende a ser o governo de um capitão entre generais, nas palavras de Willian Nozaki. O auxílio emergencial criado pela esquerda será disputado pelo bolsonarismo como retrato da benevolência do presidente da República. Os fundamentalistas religiosos continuarão a receber afagos do alto escalão do governo e a ser um dos maiores pilares de sustentação de Bolsonaro. Os ruralistas prosseguirão com a boiada derrubando as florestas. As polícias militares e os contingentes das Forças Arnadas receberão cada vez mais benefícios econômicos o que aumentará o apoio aguerrido ao neofascismo. Os generais continuarão sua guerra entreguista que passa pela ação comunicacional baseada na desinformação.

A comunicação democrática precisa melhorar e avançar. Coletivos de combate à desinformação precisam se formar. Redes de solidariedade aos movimentos sociais e ação antifascista devem crescer nas redes. O embate não se restringe à disputa eleitoral. Precisamos nos preparar para a disputa ética e comunicacional com o neoliberalismo hegemonizado pelo populismo fascista. A família Bolsonaro tem ligações umbilicais com as milícias, com esquemas de corrupção e apesar de utilizar a PF como polícia política, poderá ser desmascarada e criminalmente acusada. Mesmo assim, o neofascismo e os generais entreguistas não se incomodarão, continuarão a mobilizar suas bases formadas em torno do que existe de mais retrógrado na sociedade. Precisamos nos preparar para uma disputa comunicacional de longo prazo. A democracia, a diversidade, a defesa do meio ambiente e o avanço dos direitos humanos dependerão do avanço da nossa resistência.

Sergio Amadeu da Silveira é sociólogo, doutor em Ciência Política, professor associado da Universidade Federal do ABC. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq - Nível 2. Foi membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (2003-2005 e 2017-2020) e presidiu o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (2003-2005). É autor do podcast Tecnopolítica. Ativista do software livre e da liberdade na Internet.

1A doutrina Breibart se refere as ideias do jornalista da extrema direita norte-americana chamado Andrew Breitbart. Foi o criador do site chamado Breitbart News. Steve Bannon foi editor do site depois da morte inesperada de Breibart. Informações básicas pode ser obtidas na Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Andrew_Breitbart .