Comunicação e Política no Brasil: o caso Luciano Huck

Paulo Victor Melo e Robertha Barros*
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Comunicação e Política são dois campos profundamente articulados entre si no Brasil. O desenvolvimento dos meios de comunicação sempre foi pautado pela incidência de interesses políticos e, na mesma direção, a esfera política tem sido constantemente alterada pela presença da mídia. Alguns episódios ajudam a ilustrar isso. Trazemos, brevemente, um.

O ano era 1965. Ao iniciar uma entrevista com o então senador Atílio Fontana, um repórter da Rádio Rural de Concórdia, em Santa Catarina, disse: “senador, o microfone é todo seu”. De pronto, a resposta do senador foi: “não só o microfone, meu rapaz, mas a rádio toda”.

Se na aparência a declaração de Fontana soa cômica ou folclórica, na essência – 55 anos depois – continua simbólica do que representa um dos tantos aspectos da relação entre comunicação e política no Brasil: o controle dos meios de comunicação por parlamentares.

De acordo com levantamento do Intervozes, 26 deputados federais e senadores da atual legislatura têm participação em empresas de rádio e televisão, num flagrante desrespeito ao artigo 54 da Constituição Federal – principal documento legal do país – que estabelece que parlamentares não podem “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público...”. E o rádio e a televisão são, no Brasil, concessões de serviço público.

Mas a participação de parlamentares em empresas de rádio e TV não é a única forma de materialização da relação entre Comunicação e Política. Outra expressão dessa articulação é a utilização desses meios de comunicação como trampolim político. Em texto publicado em 2014, as pesquisadoras Iara Moura e Janaine Aires ressaltam que o uso de programas televisivos como espaços para a elevação de seus apresentadores ao patamar de potenciais representantes eletivos é um fenômeno com diversos exemplos ao longo da história.

E no Brasil de 2020 temos um caso bastante representativo desse uso da TV como forma de ascensão política: Luciano Huck e o seu Caldeirão.

Huck e o seu Caldeirão

Luciano Grostein Huck, formado em jornalismo e direito, é presença constante na televisão brasileira há 25 anos. Já passou pelas emissoras Gazeta e Bandeirantes, antes de ser contratado pela Rede Globo para apresentar o programa especial de reveillón 1999-2000.

Apenas quatro meses depois, em 8 de abril de 2000, Luciano estreava o seu Caldeirão do Huck, completando, este ano, duas décadas ininterruptas de transmissão.

Veiculado todas as semanas pela emissora de TV do maior conglomerado de comunicação do país, o Grupo Globo, o Caldeirão do Huck é o líder de audiência de toda a televisão brasileira aos sábados, considerando todos os programas da manhã e da tarde. À sua frente em audiência, no mesmo dia, apenas parte da programação noturna (novelas e Jornal Nacional, todos da mesma emissora, a TV Globo).

Atualmente, o Caldeirão tem uma duração média de duas horas e meia por semana com quadros que, de diferentes formas, evidenciam Huck como alguém “sempre disponível a ajudar as pessoas”. Para exemplificarmos o que estamos aqui afirmando, seguem abaixo resumos de alguns dos quadros do programa.

Quem quer ser um milionário – Versão brasileira inspirada no formato britânico Who Wants to Be a Millionaire, produzido em mais de 120 países, é uma atração de perguntas e respostas, em que o participante testa os seus conhecimentos gerais para alcançar o prêmio final de R$ 1 milhão.

Lar Doce Lar Nesse quadro, uma família, geralmente de classe pobre, ganha uma reforma em sua casa, e a obra é assinada por um arquiteto.

Lata Velha – A proposta do quadro é reformar o carro antigo de um dono apaixonado pelo seu automóvel. Para recuperar o carro refeito, o dono tem que dublar e dançar uma música no palco do Caldeirão ou executar algum outro desafio. Entre ônibus, caminhões, limousines, motocicletas e até carrinhos de brinquedo, o Caldeirão, em 2019, já tinha reformado 114 veículos.

The Wall – Um desafio de perguntas e respostas, disputado em dupla, que pode render mais de R$ 1.7 milhão em prêmios. É a versão brasileira do programa de mesmo nome originalmente criado nos Estados Unidos com presença em diversos países.

Com esse tipo de programação, Luciano se afirma como alguém que ajuda e apoia pessoas todos os sábados, com todo o país asssitindo. Tudo isso com muita luz, brilho, cores e música, elementos que – numa sociedade cada vez mais midiatizada e num sistema de comunicação com baixa diversidade de conteúdos e linguagens, como é o cenário do Brasil – conseguem atrair diferentes públicos, fazendo do apresentador uma celebridade cada vez mais presente no cotidiano das famílias brasileiras.

A “celebridade política” Huck


Assim, tendo a “ajuda”, a “caridade” e o assistencialismo como instrumentos de ampliação da sua popularidade, via concessão pública de televisão, Huck se consolidou não como mera celebridade, mas como uma celebridade política, afinal é o terreno da política, no proposital esvaziamento de conteúdo ideológico, também cada vez mais midiatizado.

Como celebridade política, não foram poucas as vezes que Huck utilizou o espaço privilegiado da televisão – tanto em seu programa quanto concedendo entrevista em outros – para fazer discursos de defesa da ética, de combate à corrupção e de "renovação" na política.

Emblemática neste sentido foi a sua participação, em 7 de janeiro de 2018, no programa do Faustão: "minha missão esse ano é tentar motivar as pessoas a que votem com muita consciência e que a gente traga os amigos que estão a fim para ocupar a política, senão não vai ter solução... Eu amo estar todo sábado na televisão, eu gosto muito de estar com as pessoas, de contar as histórias. Então, o que o destino e o que Deus esperam para mim, vou deixar rolar", disse Huck, ao ser perguntando por seu colega de emissora sobre pretensões políticas.


Visto à época como um dos potenciais candidatos à Presidência da República e tendo naquele momento um alto índice de aprovação popular, de acordo com pesquisa do
Instituto Ipsos, Huck – expressando não ter dúvidas sobre o lugar estratégico que ocupa – finalizou a entrevista a Faustão dizendo: “eu ainda acho que meu papel com esse microfone na mão aqui na TV Globo, motivando as pessoas, talvez seja até mais importante do que estar lá (na Presidência). Mas eu vou participar, eu vou botar a mão na massa, eu quero ajudar e eu acredito muito no Brasil. Contem comigo para tentar melhorar essa bagunça geral aqui".

Mas como é preciso desvelar o abismo que por vezes há entre aparência e essência, não custa lembrar que já na eleição presidencial de 2014, Huck atuava como um agente político importante. Após negar convites para disputar o Governo do Rio de Janeiro, Huck declarou apoio e fez campanha aberta para Aécio Neves, tendo, inclusive, acompanhado a apuração das eleições presidenciais no mesmo apartamento do então candidato do PSDB.

Analisando esse tema, o professor João Kamradt enfatiza que esse processo de consolidação das celebridades políticas é um fenômeno não apenas brasileiro e que foi ampliado com as redes sociais, ambiente em que as celebridades protagonizam campanhas e debates e conseguem despertar os olhares e ouvidos de grupos menos atentos às discussões políticas tradicionais. “Diante dos diferentes públicos que atraem, as celebridades são vistas pelos políticos como meio para atingir o eleitor que não se identifica com as decisões tomadas pelos políticos tradicionais, com as propostas ou a persona de certos políticos”, escreveu o pesquisador, no artigo “Celebridades políticas e políticos celebridades: uma análise teórica do fenômeno”.

O “político-empresário” Huck

Essa relação entre as celebridades políticas e grupos conservadores da política (e da economia) a que se refere Kamradt tem em Luciano Huck um caso exemplar. Matéria do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em setembro de 2019, três anos antes da previsão de novas eleições, revelou que um grupo de políticos e empresários já desenha um discurso e ações preparatórias a uma possível candidatura de Huck à Presidência em 2022. Dentre as lideranças dessa articulação estão o economista e ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, e o presidente do partido Cidadania, Roberto Freire.

Aqui, importa frisar que Luciano Huck não é apenas um apresentador de TV que se relaciona com a política, mas é também empresário e se tornou ao longo dos anos um participante direto, ativo, dirigente e patrocinador de grupos políticos, como o PPS e o RenovaBR.

Como exemplo, vale mencionar, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, a doação que Huck fez de R$ 235 mil para as campanhas de oito candidatos do PPS. Desse montante, Marcelo Calero, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, recebeu R$ 50 mil, e Roberto Freire, um dos defensores de uma candidatura de Huck ao Palácio do Planalto, ficou com R$ 25 mil.

A respeito do RenovaBR, idealizado por Eduardo Mufarej, empresário do mercado financeiro, e que tem Huck como principal personalidade pública, vale lembrar que oito dos nove deputados federais que participaram dos seus cursos – com bolsas entre R$ 5 e R$ 12 mil mensais – votaram a favor da Reforma da Previdência de Bolsonaro e Paulo Guedes, que, conforme diversos estudos apontam, prejudica as populações mais vulneráveis do país.

E se no discurso o grupo se reivindica como uma “escola de formação política apartidária”, no site do seu curso preparatório oito dos 17 “líderes” apresentados são filiados ao Partido Novo, agremiação política que defendeu a Reforma e que tem dentre os seus integrantes o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que defendeu, por exemplo, aproveitar a crise do novo coronavírus para “passar a boiada” e aprovar medidas de degradação ambiental na Amazônia.

Também na sua relação com política e políticos, está o fato de que, em 2007, Luciano Huck foi acusado de crime ambiental por conta de danos ambientais ocasionados com as construções de sua casa de férias em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Em 2008, a Justiça determinou que Huck parasse as obras, que incluía um muro para a criação de uma praia artifcial, porém o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, assinou um decreto alterando a lei de proteção ambiental e beneficiando Huck, que foi defendido por dois advogados do escritório da esposa do ex-governador Cabral. Ambientalistas apelidaram o decreto como "Lei Luciano Huck".

Importa citar ainda a participação de Huck como acionista de grandes empresas que demitiram funcionários durante a pandemia de covid-19: a rede de franquias de academia de ginástica Smart Fit demitiu 200 novos contratatos logo após cumprirem 90 dias de experiência; o grupo Alicerce, startup de aulas de reforço escolar, dispensou professores por mensagens de Whatsapp após o fechamento de escolas em três estados (São Paulo, Paraná e Minas Gerais), e a rede de hambúrgueres Madero também demitiu 600 funcionários de uma úniva vez.

Esses são alguns dos exemplos que confirmam Luciano Huck como nada mais que um produto fabricado pelo caldeirão da elite política e econômica nacional, que ascende à condição de celebridade política via meios de comunicação. Se na aparência é apresentado como novidade, Huck é algupém que traz em si as mesmas marcas dos grupos que sempre utilizaram a Comunicação e a Política como business para a conquista dos seus próprios interesses. Um verdadeiro risco, portanto, à democracia.

Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor e pesquisador da área de Comunicação e Política em universidades brasileiras. Robertha Barros é urbanista, doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente e atualmente realiza pesquisas no Institut für Soziologie/Centre on Refiguration of Spaces SFB 1265 na Technische Universität Berlin.