Golpe no Brasil desliga direito à comunicação pública

É com impressionante velocidade que o governo Michel Temer desmonta as estruturas que deveriam garantir a liberdade de expressão e o direito à comunicação no Brasil.
| by Livia Duarte

Ações que, aliás, combinam com o evidente apoio da mídia comercial para que fosse criado o cenário adequado à consolidação do impeachment – que parte da sociedade, acadêmicos e os partidos à esquerda indicam ser um “golpe” contra a democracia, afinal, não foi comprovado crime cometido pela presidenta Dilma Rousseff, exigência Constitucional para seu afastamento.

Nesse cenário é interessante encontrar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), bem no centro do tiroteio político.  Trata-se da empresa de comunicação pública brasileira, fundada em 2007, no governo Lula. A EBC é responsável pela TV Brasil – que os opositores apelidaram de “TV Traço”, por um falacioso argumento de falta de audiência, o que justificaria até mesmo seu fechamento -; a TV Brasil Internacional; nove emissoras de rádio - entre elas a Rádio Nacional da Amazônia e a do Alto Solimões, que em grandes áreas da Amazônia brasileira são os únicos veículos disponíveis, já que a impossibilidade de lucro gera desinteresse da mídia comercial.  Controla também duas agências de notícias e um portal na internet e, ainda, um setor de Serviços, este de caráter estatal, produzindo para a Presidência da República o canal TV NBR e o programa de rádio A Voz do Brasil, no ar há mais de 70 anos e com transmissão de segunda à sexta, obrigatória e em cadeia nacional, por todas as emissoras do país.

Salvo raras e honrosas exceções, é via canais públicos que encontramos representada a diversidade étnica e social do país. Para dar alguns exemplos, todos relativos à TV Brasil, é o canal aberto com maior exibição de cinema brasileiro, e valoriza também o que é produzido na América Latina; conta com programas sobre e apresentados por pessoas LGBT num país onde o preconceito gera índices alarmantes de violação de direitos e assassinatos desta população e exibe telejornal adaptado para surdos, na Língua Brasileira de Sinais. Resiste na TV pública uma premiada programação infantil, incluindo um desenho animado cujos personagens são negros. Esta tem se convertido na única programação disponível para os pequenos em TV aberta depois do proibição de publicidade destinada para crianças e da consequente perda de lucro para os canais privados.

Apesar da variedade e da importância da programação, reconhecida com diversos prêmios nacionais e internacionais, a EBC vem sendo, e com maior virulência nos últimos meses, frequentemente hostilizada pela mídia comercial. Um dos principais argumentos é de que seria aparelhada pelo Partido dos Trabalhadores e, por isso, se configuraria em porta-voz do governo deposto.  Também é corrente a acusação de que o governo fez “grandes investimentos sem retorno” na EBC, ou seja, os detratores dizem que os canais de comunicação da empresa não têm audiência e não geram lucro, problemas que teriam impacto crescente diante da crise econômica, razões para seu abandono. O argumento não reflete apenas certo mau-caratismo ao desconsiderar, historicamente e também do ponto de vista econômico, o lugar ocupado pela EBC no espectro da comunicação do Brasil. Para efeito de comparação sobre a disparidade econômica, vale dizer que, segundo O Globo[1], o governo gastou R$ 547,6 milhões em 2015 com a EBC – incluindo rádios, TVs, Agências. Já segundo UOL[2], apesar dos cortes nos últimos anos, a TV Globo, no mesmo ano, recebeu, sozinha, R$ 591,5 milhões de propaganda federal. Mas, independentemente de cifras, os argumentos da mídia comercial demonstram a falta de compreensão a respeito do papel a ser desempenhado pela comunicação pública num país historicamente dominado por sistemas de comunicação privados e oligopolizados.

É possível, claro, que a “falta de compreensão” dos órgãos privados seja deliberada: a EBC, apesar dos problemas sempre apontados também por seus defensores, é considerada uma das raras vitórias do movimento pela democratização da comunicação no Brasil durante os anos do PT. Diante do sentido de urgência das intervenções do governo empossado sem votos, não é difícil inferir que a “TV Traço” e os outros veículos da EBC geram suficientes distúrbios ao uníssono dos veículos privados para que medidas enérgicas sejam tomadas.

Vamos às datas: Dilma Rousseff foi afastada em 12 de maio por 180 dias para investigações e posterior julgamento no Senado. Michel Temer, vice-presidente, assumiu interinamente. Apesar do caráter temporário, fez modificações profundas na estrutura do governo federal sob o argumento de reduzir gastos públicos. A mídia comercial alardeava o descontrole com o erário e o rombo no orçamento provocado pelos governos petistas. A suposta inabilidade administrativa seria a senha para justificar o impeachment sem crime. Entre as mudanças promovidas pelo presidente (naquele momento interino) estava a aglutinação do ministério das Comunicações com o de Ciência e Tecnologia e a extinção do ministério da Cultura. Seguiram-se protestos em todo o país e esta última decisão foi revogada.

Apenas cinco dias após assumir interinamente, Temer também exonerou o presidente da EBC, Ricardo Melo. Em questão de dias foram centenas de demissões ou trocas de postos de comando na EBC promovidas por Laerte Rímoli, o homem destacado pelo governo interino para presidir a empresa. Em seu currículo, condenação anterior por desvio de dinheiro público e ligações com o presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, que sofre processo de cassação de mandato por corrupção e foi acusado por Dilma de ter sido o grande articulador do “golpe”. Melo acionou a Justiça e voltou a seu posto mas, menos de 48h depois do fim do processo de impeachment, a liminar do Supremo Tribunal Federal foi retirada e abriram-se espaços para nova exoneração e nova nomeação. Um decreto já havia renomeado Rímoli e sido revogado antes da última decisão do Supremo. Agora é questão de tempo. Mas é possível que a guerra jurídica sobre este ponto continue.

Além disso, o novo governo editou uma Medida Provisória (MP) que corrói as estruturas que fazem a EBC pulsar como empresa pública de comunicação. Uma MP é uma lei criada pelo Executivo, sem a participação do Legislativo, que será posteriormente acolhida ou descartada pelo Congresso.  A MP 744 “desmonta a EBC”, conforme denuncia moção de repúdio lançado pelo Conselho Curador da empresa, extinto por ela. 

O Conselho Curador é o principal órgão de controle social e de fiscalização da EBC, constituído por 22 membros, sendo 15  da sociedade civil, com grande ênfase na pluralidade entre representantes. O conselho foi responsável, por exemplo, por demandar uma faixa de diversidade religiosa na TV Brasil e nas rádios, recomentar e cobrar diversidade de gênero, raça, orientação sexual e acessibilidade em todos os conteúdos, defender pautas relacionadas aos direitos humanos. O conselho também recebia e dava direção aos apontamentos da ouvidoria da EBC, uma estrutura adequada para dar consequência a pergunta de qualquer cidadão, curioso, por exemplo, com o desaparecimento da reportagem[3] “Rita Freire critica extinção de conselho da EBC; Melo recorrerá de exoneração”, que havia sido publicada pela Agência Brasil. A Medida Provisória também submete a empresa à Casa Civil; acaba com o mandato do diretor-presidente da empresa, tornando-o refém de nomeações e exonerações; e modifica o Conselho de Administração, aumentando nele o número de representantes do governo.

Quando os primeiros rumores de que a MP seria editada começaram a circular, muitos funcionários temeram a extinção da empresa e a perda de empregos. O movimento do governo, contudo, foi muito mais arrojado: mantém a empresa, mas substitui sua cabeça e lhe tira o sangue. Neste corpo oco, agora sim, cabe aparelhamento sem que um braço ativo da sociedade possa impedir ações negativas diretamente, via Conselho Curador. A MP fere o artigo 223 da Constituição, que prevê a complementariedade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação. Significa, assim, nova afronta à democracia, que acontece em ensurdecedor silêncio, inclusive porque a sociedade em geral - tanto quanto boa parte dos funcionários da empresa - não compreendem a importância do direito de comunicar e o que a EBC representa para a comunicação no Brasil, tanto pelo que é quanto pelo que poderia chegar a ser. Agora, resta esperar a decisão definitiva da Justiça realtiva à presidência da empresa. No caso das demais mudanças, a EBC espera a tramitação da MP no Congresso.  Em ambos os casos, a compadrio estabelecido entre os três poderes desde o impeachment de Dilma, somado à evidente pressão da mídia comercial, torna escassas as esperanças de uma mudança de cenário.  É como pequenas e grandes conquistas da sociedade brasileira já vão sendo apagadas num único golpe.



[1] http://oglobo.globo.com/brasil/gastos-com-ebc-chegam-r-36-bilhoes-desde-sua-criacao-19379523

[2] http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/07/06/governo-cortou-r-206-milhoes-em-publicidade-da-tv-globo-em-2015/

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-09/rita-freire-critica-extincao-de-conselho-da-ebc-melo-recorrera-de