Brasil 2019: a Educação em tempos de trevas

Maria Aparecida da Silva Fernandes Nasceu em Natal/RN/Brasil. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN-Campus Parnamirim. Licenciada em Letras, Mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação pela UFRN. Autora do livro “O Morro pede passagem: educação libertadora em Mãe Luiza – Natal/RN”.
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Começo a escrever este artigo, em 08 de abril, no momento em que o Presidente Jair Bolsonaro substitui o Ministro da Educação, Ricardo Vélez, por Abraham Weintraub. Como de praxe, anuncia a exoneração de um e a nomeação do outro pelo Twitter, ao invés de seguir o ritual próprio da administração pública concernente a um Presidente da República. Se o leitor questionar qual o peso da mudança, a resposta é nenhum peso. Trocam-se os nomes, mas o retrocesso continua o mesmo.
Ricardo Vélez, um colombiano naturalizado brasileiro, formado em filosofia e teologia e professor de diversas universidades, era, até sua nomeação como Ministro da Educação, um ilustre desconhecido, saído da leva de indicações de Olavo de Carvalho, um brasileiro residente nos EUA, autodenominado “filósofo conservador” cujo currículo consta de militante contra a ditadura nos anos 1960, astrólogo nos anos 1970, místico nos anos 1980. Olavo de Carvalho passou a ter algum espaço na imprensa nos anos 1990 até início dos 2000 e tem sido sujeito das mais diversas declarações, muitas das quais esdrúxulas, impensáveis para o atual estágio de desenvolvimento em que estamos, como o petróleo não ser um combustível fóssil ou que a terra não gira em torno do sol. Alinhado ideologicamente à direita brasileira, não à toa se aproximou dos setores mais conservadores da Igreja Católica e tem feito defesas do período da ditadura no Brasil, contrariando sua posição dos anos 1960. Recentemente, usou de suas redes sociais, mais uma vez, para destilar ódio aos professores: “Quem destruiu o Brasil foram os professores de filosofia, direito e ciências sociais”. É importante situá-lo neste espaço, porque ele tem sido o referencial dos bolsonaristas, guru do próprio clã Bolsonaro, e esta influência diz muito do fundo do poço a que o Brasil está submerso.
Voltando a Ricardo Vélez, Ministro exonerado, seus quase 100 dias à frente do Ministério da Educação foram marcados por buscar promover um desmonte na educação básica. Sua primeira ação foi destruir a secretaria de diversidade e criar a pasta de alfabetização, considerada por ele como prioritária, mas com defesa de retomar o método fônico para alfabetizar, sendo alvo de muitas críticas advindas de especialistas da área e das secretarias municipais de educação, visto que os estudos sobre processos metodológicos de alfabetização há muito avançaram no Brasil, superando o que fora proposto pelo ministro. Ademais, o grande problema da alfabetização não se concentra no método, mas no déficit de creches e escolas de educação infantil que atenda às crianças de baixa renda.
Inoperante no cargo, o ímpeto destrutivo de Vélez foi levado a cabo no MEC, baseado em suspeições e teses falaciosas sobre a realidade educacional brasileira e sobre o próprio órgão que liderava, o que o levou a sínteses equivocadas e simplistas, como afirmar que o “marxismo cultural” dominava a educação brasileira e que Paulo Freire, um dos nossos maiores pensadores (e que nunca chegou a ser efetivamente levado em conta na construção dos projetos pedagógicos da maioria das escolas), seria a causa do atraso na educação do país. Resultado disso, vê no Enem – principal exame nacional de acesso às universidades, especialmente para as classes menos favorecidas – um antro de formação ideológica da esquerda. Essa alucinação o leva a anunciar uma comissão para “passar pente fino” em questões da avaliação que julga ideológicas e suscita declarações do próprio Presidente Bolsonaro de que iria ver as questões da prova antes da realização do Exame, ignorando, ambos, um requisito básico para o sucesso de sua aplicação: o da isonomia.
No ímpeto de combater o que chama de “ideologização”, alinhado totalmente a uma visão elitista de educação, chegou a afirmar em entrevista que a universidade não é para todos: “as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica do país”1. Ainda, publicou um edital para compra de livros, excluindo critérios como o compromisso com a agenda de combate à violência contra mulheres, quilombolas, indígenas e demais grupos minoritários, além de permitir obras sem referências bibliográficas e com erros. Com a reação da sociedade, via redes sociais e mídias, tanto tradicionais como alternativas, retirou o edital de circulação. Em outra atitude atrapalhada e sem relevância para a educação, enviou, em 25 de fevereiro, carta às escolas, pedindo que diretores colocassem os alunos para cantar o hino nacional e os filmassem, dizendo o slogan da campanha de Bolsonaro. Mais uma vez, a sociedade reagiu, a União Brasileira dos Estudantes (UBES) fez campanha para que os alunos filmassem os problemas das escolas e enviassem para o ministro. O grupo olavista (ligado a Olavo de Carvalho) começa a se desentender com o ministro, em função de nomeações para o órgão, e o MEC aprofunda a crise. Junta-se a isso, a suspensão da avaliação da educação básica, o SAEB, gerando o pedido de demissão da Secretária da Educação Básica, que não concordara com a medida.
O cenário educacional brasileiro se torna burlesco, com um ministério sem rumo, sem projeto e, no plano das ideias, mergulhado em teses estapafúrdias, como a visão de que há doutrinação nas escolas, que a esquerda domina o MEC, que o comunismo ameaça o Brasil, que não houve golpe em 1964, nem ditadura. Aliás, sobre isso, o ex-ministro propôs até revisão dos livros didáticos de história, pois considera que no Brasil não houve ditadura e os livros precisam apresentar “uma visão mais ampla da história”. Essa proposta, em flagrante desrespeito às vítimas da ditadura civil militar ocorrida no Brasil entre 1964 e 1985, aliada à desonestidade intelectual, na verdade, aponta para uma reescrita falseada da história brasileira. A sensação dos que defendem a democracia é que um portal do tempo foi aberto e voltamos ao momento de plena Guerra Fria. O governo Bolsonaro usa à larga escala o discurso do combate ao comunismo e à esquerda. Isso, em um contexto em que o Brasil, mesmo após os avanços dos governos do Partido dos Trabalhadores, não conseguiu chegar nem ao patamar de Estado do Bem Estar Social almejado.
O pano de fundo desse governo é que se vai desconstruindo tudo o que havia de avanços – ainda não suficientes, dado o processo histórico excludente do Brasil – na área de políticas afirmativas na educação. A ampliação do número de vagas nas universidades, a interiorização das universidades federais e da Rede Federal de Educação Profissional, que quintuplicou nos governos do PT, saindo de 109 campi no país para 644, o acesso de estudantes pobres, negros e indígenas ao ensino superior e à educação profissional por meio da política de cotas, as políticas de permanência por meio da assistência estudantil, a implantação da educação do campo etc., nada disso é visto pelo novo governo como políticas públicas necessárias que apontam para um caminho de desenvolvimento e inclusão social no país. Ao contrário, para o staf governamental, são meras marcas do esquerdismo que devem ser extirpadas. E isso se reflete na cruzada de tentar destruir os conselhos e fóruns de educação, os movimentos de educadores e estudantes que têm sido, historicamente, protagonistas em pautar os temas das políticas educacionais.
Importante é fazer o registro de que o governo Bolsonaro já herda do ilegítimo Michel Temer, o vice que articulou o impeachment da Presidenta Dilma Roussef, a escalada do retrocesso na educação pública brasileira: a aprovação da Emenda Constitucional – EC 95, que congela investimentos na área social, incluindo a educação, por 20 anos; a imposição de uma Base Nacional Comum Curricular – a BNCC – à revelia do que se vinha construindo há anos com participação de educadores e especialistas na área da educação básica; a Reforma do Ensino Médio, que prevê, em síntese, a formação por meio de itinerários formativos, exclusão do currículo de várias disciplinas como Sociologia, Filosofia, Educação Física, Artes; a transformação de disciplinas obrigatórias como História e Geografia em temas transversais. Ainda assim, o MEC de Bolsonaro se mostra incapaz de acenar concretamente até para viabilizar o que já fora pavimentado por seu antecessor.
A reforma do Ensino Médio, por exemplo, é um retrocesso, parte importante desse desmonte, porque atinge somente a escola pública, considerando-se que essa etapa do ensino ainda é um grande problema no país, pois 1,5 milhão de pessoas entre 15 e 17 anos estão fora da escola, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Essa reforma contribuirá para piorar esses índices, visto que as escolas não oferecerão todos os itinerários formativos, levando os estudantes a ter sua formação dificultada, devido ao deslocamento para escolas distantes do seu lugar de moradia; a ter sua formação precarizada, pois será limitada a um nicho apenas do campo de conhecimento; consequentemente, aqueles alunos que pretendem chegar à universidade, jamais conseguirão concorrer com os alunos das escolas privadas, que terão formação geral. Retorna-se, assim, ao anterior estágio, até os anos 1990, findando com o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, em que as universidades brasileiras tinham um público majoritariamente composto de brancos, classe média e endinheirados, assumindo caráter profundamente elitista.
Acrescida a esse cenário, a visão de formação profissional estabelecida com a Reforma do Ensino Médio contrasta profundamente com a concepção e a organização assumidas pela Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Nesta se oferece o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, o que possibilita que o estudante aí formado tenha possibilidades de escolha: ele pode atuar como técnico no mundo do trabalho ou pode seguir carreira universitária. A formação que recebe nos Institutos Federais lhe garante isso. Com o “novo” Ensino Médio, a formação profissional passa a ser meramente tecnicista, relegando os estudantes oriundos das classes trabalhadoras a perpetuar o ciclo familiar em que só lhes cabe a mão de obra barata para atuar em um mercado de trabalho também precário. Logicamente, é desse modo que se aprofunda a desigualdade social, aumenta-se a distância entre ricos e pobres, evitando-se processos de mobilidade social.
Mesmo com todo caminho de retrocesso deixado por seu antecessor, o governo Bolsonaro não consegue dar um passo nem para implementar aquilo que já teria de prático servindo aos seus interesses. Sem qualquer projeto de país, o governo todo patina no discurso vazio da “ideologização de esquerda”, perde-se em apontar adversários políticos, atribuindo-lhes adjetivos que julga moralmente condenáveis, como “defensores de ideologia de gênero”, “comunistas”, “petralhas” etc. É um governo intelectualmente fraco e potencialmente inoperante.
Com a crise instalada no Ministério da Educação, o Ricardo Vélez foi exonerado do cargo. Em seu lugar, o novo ministro, Abraham Weintraub, estreia com a força do grupo do Olavo de Carvalho. Bolsonaro, acatando esta indicação, acena mais uma vez para o mercado financeiro. Weintraub não tem currículo que aponte larga experiência no fazer da educação. Sua atuação nesse campo engloba docência na área de direito previdenciário na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e cargo de diretor executivo do Centro de Estudos da Seguridade da mesma universidade. No entanto é um executivo do sistema financeiro há 20 anos e ocupava no governo Bolsonaro o cargo de secretário executivo da Casa Civil2. Ainda na transição de um cargo para outro, deixou uma proposta de capitalização da previdência, semelhante à que, no Chile, leva, hoje, idosos ao suicídio. Segundo matéria da BBC3, Abraham participou, junto com seu irmão, Arthur Weintraub, também um nome da equipe de governo de Bolsonaro, da Cúpula Conservadora das Américas e apresentou palestra em que listava estratégias para “vencer o marxismo cultural nas universidades”, sob inspiração do ex-astrólogo Olavo de Carvalho.
Pelo quadro apresentado, vê-se que não dá para ensaiarmos qualquer projeção de confiabilidade. Nada de mudança significativa no campo da educação brasileira com o novo ministro, do ponto de vista de uma escola pública, universal e de qualidade, conforme vêm lutando para conseguir os que fazem a educação no Brasil.
Abraham Weintraub herda o MEC com questões urgentes a serem resolvidas, como a renovação (ou não) do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – cujo prazo expira em 2020. O FUNDEB financia 80% de todas as matrículas dos estados e municípios, cerca de R$ 150 bilhões por ano vindos de impostos e de transferências obrigatórias pela Constituição. O que será feito com o FUNDEB depois que expirar sua validade? Nada se tem do governo sobre o que pretendem pôr em prática. Junte-se a isso, a implementação da nova BNCC – Banco Nacional Comum Curricular – também herdada do governo Temer e imposta sem diálogo com os educadores – dos quais tem grande resistência. Qual o norte da educação básica? O que será da formação de professores?
Outro ponto urgente é a realização do Enem este ano ainda. A gráfica que imprimia as provas decretou falência e ainda não se tem outra no lugar; o coordenador do exame foi demitido e, embora o MEC afirme que as datas de sua realização permanecem, essa avaliação está em risco. Milhares de candidatos a entrar na universidade em 2020 poderão ter que adiar este sonho. O que será feito? Nada de aceno do governo sobre o assunto até o momento.
Quanto ao ensino superior, também há um desmonte em curso, o que se pode constatar em algumas ações nestes 4 meses de governo: no decreto baixado, já em março, extinguindo 21 mil cargos comissionados, sendo 13. 710 deles nas instituições de ensino. O alvo dos cortes são cargos ocupados por servidores efetivos, como os de coordenação de cursos, e não atingem os cargos de livre nomeação. Entidades de classe apontam a iniciativa como clara intenção de atingir a autonomia das universidades para poder nomear para cargos de coordenação e direção pessoas de confiança do governo. Outro decreto publicado no Diário Oficial da União, em edição extra, contingencia R$ 29,582 bilhões do orçamento federal de 2019. A Educação perdeu 25% dos recursos previstos. Isso significa comprometer gastos com materiais, com manutenção de laboratórios, equipamentos, com ensino, pesquisa, extensão.
Paralelamente ao desinvestimento na área, ainda se constrói uma espécie de cruzada bolsonarista de desqualificação das instituições de ensino e de seus profissionais em todos os campos. O governo usa da estratégia de alçar sobre estes a suspeita de malversação do dinheiro público, ao ponto de anunciar, em sua rede social, em 4 de março, a criação da “Lava-Jato da Educação”, sob a justificativa rasa de que “a agenda globalista mira a divisão de classes” e que “mudar as diretrizes ‘educacionais’ implementadas ao longo de décadas é uma de nossas metas para impedir o avanço da fábrica de militantes políticos para formarmos cidadãos”.
A estratégia de desqualificar a educação pública revela a face obscurantista do governo Bolsonaro, só justificável pela necessidade de apressar o processo de desmonte do setor com a clara finalidade de entregá-la ao sistema financeiro. Seus discursos de rasteiro conteúdo moral e suas ações soam-nos como estando em gestação um grande projeto de pilhagem do patrimônio público para servir a interesses de pequenos grupos. Para isso, a educação é o principal alvo e seu ministro fora escolhido a dedo para a tarefa. Além dos cortes no orçamento para sucateá-la, tem-se também o receio de que educadores comecem a sofrer perseguições e represálias. E esta não é uma preocupação sem fundamento. O Decreto Nº 9.759, publicado em 11 de abril, extingue e limita colegiados na administração pública federal. Isso atinge em cheio a autonomia das Instituições e significa acabar com conselhos, fóruns, núcleos e afins, canais de participação da comunidade acadêmica por meio dos quais se constroem tomadas de decisões sobre temas importantes das instituições de ensino.
Por fim, no horizonte, nada se vislumbra – nem do ponto de vista do que se poderá manter, tudo é uma incógnita!, nem do que de positivo se poderá construir. A agenda de desenvolvimento econômico, social, sustentável, inclusivo, vislumbrando-se a superação das desigualdades, o aperfeiçoamento da democracia, tendo como pilar a melhoria crescente da educação pública e das demais políticas públicas de emancipação do povo brasileiro está fora de cogitação.
O Brasil vive, agora, em pleno século XXI, sua idade das trevas.


REFERÊNCIAS:
PASSARELI, Hugo. ‘Ideia de universidade para todos não existe’, diz ministro da Educação. In: Valor Econômico. Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/6088217/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-ministro-da-educacao Acesso em: 08 abr. 2019.
SAIBA Mais – Agência de Reportagem. Bolsonaro coloca executivo do mercado financeiro na Educação. Disponível em: https://www.saibamais.jor.br/bolsonaro-coloca-executivo-do-mercado-financeiro-na-Educação Acesso em: 18 abr. 2019.
BBC News Brasil. Quem é Abraham Weintraub, o novo ministro da Educação do governo Bolsonaro. Disponível em: https://www.bbc.com/potuguese/brasil-47859934 Acesso em: 18 abr. 2019