"Nem cabelo liso você tem" - Uma análise sobre os estereótipos em relaçao ao povo Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro

Jessica Tupinambá*
| by hannah.dora@kooperation-brasilien.org
  1. INTRODUÇÃO

Dias antes de iniciar este artigo, acompanhei minha tia ao hospital, na cidade de Itabuna (Bahia), para que ela ganhasse seu filho. Após o nascimento, levei meu primo para fazer os primeiros exames. Quando informei ao enfermeiro meu endereço – na aldeia Serra do Padeiro, Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, vizinha a Itabuna –, ele perguntou se eu era índia “de verdade”. Respondi que sim e ele retrucou: “Não parece. Nem cabelo liso você tem!”. Para muitos, índios são apenas aqueles que têm cabelos lisos e olhos puxados, e que moram na Amazônia. “Lá tem índio de verdade”, dizem. Partindo desse incômodo, concebi este artigo com o objetivo de discutir o que o meu povo, os Tupinambás[1] da Serra do Padeiro, vem passando, por assumirmos uma cultura e uma origem, ao nos autoidentificarmos como indígenas. Buscarei apresentar neste texto o modo como nos organizamos em nossa aldeia, alguns dos estereótipos em relação ao nosso povo e a forma como lutamos para pôr fim à discriminação.

O caso ocorrido no hospital não foi a única situação constrangedora que passei devido a minha identidade. Na faculdade, já escutei de educadores: “Essa índia está muito evoluída, está querendo aprender demais”. Amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos às vezes me perguntam, ironicamente, se eu moro em oca e por que não ando nua. “Você anda de carro e tem celular”, dizem alguns, “não é índia de verdade”. Para muitos, eu “virei índia”, para ter benefícios indevidos. Em algumas situações, escutei falas ainda mais ofensivas, de pessoas que consideram os Tupinambás “ladrões de terras”, “falsos índios”, “bandidos”. Se usamos nossos adereços indígenas, as pessoas riem de nós. Antes, eu me pintava com jenipapo frequentemente, pois a pintura nos traz força e proteção. Porém, após sofrermos ameaças e ataques por parte de moradores das proximidades, passei a ter medo de me pintar. Hoje, por questão de segurança, não me pinto quando tenho que sair da aldeia, apenas quando estou na comunidade ou quando viajo para fora da região. Meus parentes que precisam ir constantemente à cidade também já não se pintam como antes.

Para fundamentar este artigo, entrevistei seis indígenas moradores da Serra do Padeiro (sendo três mulheres e três homens), que exercem papéis importantes para a comunidade[2]. Escolhi realizar entrevistas para incorporar ao texto elementos da realidade vivida pelos Tupinambás da Serra do Padeiro, apresentando uma contribuição original e colocando em destaque a visão dos próprios indígenas. Além disso, reuni também referências bibliográficas sobre o tema abordado aqui. A seguir, apresentarei algumas informações sobre os entrevistados e, logo depois, alguns dados sobre os Tupinambás da Serra do Padeiro.

Rosivaldo Ferreira da Silva (Cacique Babau), 41 anos, à exceção do pajé, é a principal liderança da comunidade. Ele é amplamente reconhecido por lutar pela demarcação do território tupinambá, que é o maior desejo do nosso povo. Maria da Glória de Jesus, 60 anos, é uma das anciãs da comunidade. Faz parte do conselho de mulheres, já foi merendeira do Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (CEITSP) e trabalha na roça. Dona Maria é uma mulher muito sábia e importante para o nosso povo; ela é a pessoa que mais conta histórias vividas por nossos antepassados. Glicéria Jesus da Silva, 33 anos, é presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP) e professora do CEITSP. Além disso, participa do movimento de mulheres e da luta pela terra. Maria da Conceição Santos Neri, 32 anos, é professora e vice-diretora do CEITSP. José Aelson Jesus da Silva, 38 anos, é motorista da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (SESAI/MS), membro do grupo jovem e puxador do toré[3]. Alzenar Oliveira da Silva (cujo nome indígena é Atiati), 30 anos, é professor de informática do CEITSP e liderança do grupo jovem.

A aldeia Serra do Padeiro se localiza entre os municípios de Una, Buerarema e Ilhéus, a 18 km da sede de Buerarema, e nela vivem cerca de 450 indígenas. Trata-se de uma das comunidades que se situam na TI Tupinambá de Olivença, que tem aproximadamente 47 mil hectares e se estende do litoral até as serras. Nossa aldeia é rodeada por serras e cortada por rios e nascentes. O que define os Tupinambás como um povo é o nosso modo de vida, a cultura, a religiosidade e a luta pela demarcação da terra[4]. Nós vivemos em comunidade e pensamos muito no coletivo. Nossa cultura é voltada para a terra: trabalhamos em roças, divididas por troncos familiares, com plantio de mandioca, abacaxi, banana-da-terra e cacau, sendo este último responsável pela maior parte da renda das famílias. Além disso, os mais velhos têm o hábito de caçar, com armadilhas no mato, para o próprio consumo. Geralmente, pegam tatu, paca, capivara e saruê. Na época em que o rio está cheio, pescamos. Criamos muita galinha e muito pato; algumas pessoas criam porcos, bodes e gado. A religiosidade da Serra do Padeiro é muito sólida: nós somos guiados pelos encantados[5]. Não lutamos por uma terra só para nós, lutamos pela terra que os encantados querem de volta; consideramos a Serra do Padeiro um templo sagrado, a morada dos encantados. Em 2000, fomos reconhecidos oficialmente como povo e, em 2004, começou o processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença. Porém, o processo demarcatório está muito lento e ainda aguardamos a assinatura da portaria declaratória pelo ministro da Justiça.

Sempre vivemos aqui, neste pé de serra; toda esta área era ocupada por indígenas. Depois, os fazendeiros vieram, para implantar o cacau, e tomaram nossas terras. Na época, os indígenas não tinham os conhecimentos necessários para se defender. Por esse motivo, muitos foram obrigados a trabalhar para fazendeiros, outros foram mortos e outros ainda tiveram que ir embora. Porém, alguns resistiram. Em vida, meu bisavô, João Ferreira da Silva (João de Nô), tronco da minha família, nunca perdeu a terra. Quando morreu, deixou parte dela para meu avô, Rosemiro Ferreira da Silva (seu Lírio), pajé da aldeia. É o local onde moramos até hoje. Outras famílias também resistiram, em pequenos pedaços de terra. Nos anos 2000, iniciamos o processo de retomada do território. Guiados pelos encantados, começamos a recuperar o que sempre foi nosso, as terras onde hoje vivemos e plantamos. Com a saída dos fazendeiros, conseguimos recuperar nossas matas. Nesse processo, muitos parentes puderam voltar; em cada local da aldeia, hoje vive um tronco familiar. Se nós não fizéssemos isso, nosso povo iria se enfraquecer e acabar. Ao longo de todos esses anos, nossa história nunca morreu; mesmo cansados da luta, não deixamos a história se acabar.

  1. A LUTA PELA TERRA E A DISCRIMINAÇÃO

“Quando começamos a dizer que éramos índios, foi um choque na região”, lembra d. Maria. “Toda a vida, nós fomos índios, mas não podíamos dizer”, ressalta. “Ninguém podia dizer que era índio, porque, se falasse que era índio, morria.” D. Maria conta que, antes, éramos chamados de caboclos. Como indicam Carvalho e Carvalho, “aparentemente, Índio e Caboclo constituem categorias com grande poder polissêmico, variável de acordo com o contexto onde emergem” (2012: 16). Em nosso território, as pessoas nos chamavam de caboclos para negar nossa própria identidade e nossos direitos. Para Serra,

O objetivo político deste emprego estigmatizante da palavra ‘caboclo’ é a

interessada denegação de uma identidade étnica. Sucede que os grupos

reconhecidos como indígenas têm a garantia constitucional do direito às terras

por eles tradicionalmente ocupadas; logo, se os invasores das ditas terras

admitirem que aqueles a quem as disputam são índios, estão reconhecendo a

legitimidade do título de posse dos adversários e desqualificando a sua própria

pretensão... (2012: 70-71).

Conforme observa Serra, “o caboclo vem a ser, nessa perspectiva racista, um remoto e ‘impuro’ descendente de índio – ‘misturado’, ‘descaracterizado’, ‘falso’, ‘degenerado’” (Ibid.:71). Na mesma direção, Bonfil Batalla enfatiza:

O estereótipo colonial do “índio” implica necessariamente carências,

deficiências e condições gerais de inferioridade; se alguém, individualmente,

não comporta esses atributos, segundo a visão dominante, “deixa de ser índio” e

alcança um estatuto superior (o de não-índio); e se nessa situação mantém sua

própria identidade e pretende ser porta-voz de seu povo, a sociedade dominante

recorre ao expediente de desqualificá-lo, negando sua indianidade e afirmando

que esses não são “os verdadeiros índios” (1981: 12, traduzido).

 

Por outro lado, quando nós nos chamávamos de caboclos era para afirmar nossa identidade; hoje, usamos essa palavra para falar dos caboclos da mata (encantados). Nesta região, tudo era dos índios, de Olivença à Serra do Padeiro; meu bisavô contava que o marco dos índios era na praça de Canavieiras. Os índios mais velhos andavam a pé por toda a região, chegando até Caramuru, onde vivem os Pataxós Hãhãhãe, e a Porto Seguro, onde habitam os Pataxós. O povo Tupinambá da Serra do Padeiro vivia nas matas e nas locas de pedra, sobrevivendo da caça, da pesca e do que plantava. Tínhamos o cipó-verdadeiro e a timborana, para fazer munzuá, jereré e balaio[6]. Pescávamos, fazíamos tapagem, pegávamos gajé e pitu – pegávamos muita comida, porque havia muita água. Para fazer beiju e farinha, a mandioca era ralada na pedra. “Cuidávamos da mata, vivíamos da terra, vivíamos muito bem”, lembra d. Maria. Porém, depois, entraram os fazendeiros e madeireiros, e começaram a nos expulsar de nosso território. Alguns compravam terras e outros as tomavam de nós. Eles recebiam os títulos de terra, a vida ia mudando e nós não podíamos dizer nada – eles achavam que índio não tinha direito a nada. Foi o período em que perdemos tudo que tínhamos e começamos a morar de favor e a trabalhar para os outros. Passados alguns anos, os poucos de nós que sobraram se reorganizaram; começamos a luta pelos nossos direitos e nos assumimos como índios. O governo reconheceu a terra indígena, apesar de, até agora, a demarcação ainda não haver terminado. A partir de então, a disputa fundiária se intensificou.

Nossa trajetória histórica é semelhante às trajetórias de outros povos indígenas do Nordeste. Como sintetiza Oliveira, “Ao final do século XIX já não se falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos individualmente como ‘remanescentes’ ou ‘descendentes’. São os ‘índios misturados’ de que falam as autoridades, a população regional e eles próprios” (2004: 26). A esse respeito, Brasileiro observa:

 

[...] se é fato que muitas das etnias que ocupavam a região Nordeste do Brasil

tiveram, no decurso dos diversos momentos históricos e sob pressões de toda

ordem, em um lapso de quatro séculos de contato com a sociedade regional, a

sua condição etnicamente diferenciada negada, ou diluída, outras lograriam, a

partir da segunda metade do século passado, reemergir, no bojo de processos de

reestruturação sócio-organizativos engendrados geralmente em situações de

renovadas pressões fundiárias, mas em um contexto de legitimação formal mais

favorável. Nos processos contemporâneos de construção sociopolítica e

afirmação étnica têm se destacado povos como os Pankararu e os Truká, em

Pernambuco, os Potiguara, na Paraíba, os Kariri-Xokó, em Alagoas, e os Kiriri,

Tuxá e Tupinambá, na Bahia, que se mobilizaram em prol da “busca pelos

direitos” (2012: 235-236).

 

Antigamente, na época em que trabalhávamos para os fazendeiros, o preconceito e a perseguição contra o nosso povo já existiam. Porém, com a luta pela demarcação e com o processo de retomada, eles aumentaram ainda mais. Sofremos ameaças de pistoleiros contratados por fazendeiros e da própria polícia. Muitos comentam que nossa identidade é “ilusão”, que somos todos “ladrões de terra”, ressalta d. Maria. Eles dizem que surgimos do nada, porém, sempre vivemos aqui. “Ficam gozando de nossa cara, dizendo que ‘viramos’ índios. Eles nunca perguntaram a nossa história, nunca souberam de onde viemos e sempre nos tacharam. Nesta nossa longa caminhada, sofremos várias formas de opressão e de preconceito, mas superamos, com a luta e com a nossa existência”, diz Glicéria. Hoje, recuperar a terra é nosso maior objetivo. “A terra, para mim, é vida; a terra, para mim, é tudo”, afirma d. Maria. “É onde nos criamos, é onde sobrevivemos, onde nós temos água, onde temos todos os alimentos para nós e para quem chega. Portanto, a terra é tudo para nós; sem ela, nós não vivemos. Índio é feito minhoca: se tirar da terra, morre.”

Atualmente, o povo Tupinambá é amplamente reconhecido por sua trajetória de luta, tanto no Brasil como no exterior. Por isso, frequentemente, somos convidados para dar palestra e participar de encontros, seminários e reuniões. Porém, em função da luta, somos muito hostilizados na região onde se localiza nossa aldeia. “Muitas pessoas da cidade mangam da gente e desacreditam de nossa cultura. Poucos nos apoiam”, diz Alzenar. “Muita gente olha para mim e diz: ‘Oxente, você é índio?’. Quando respondo que sou, falam: ‘Não parece, não, não tem nada a ver com índio’”, conta José Aelson. Como observam Carvalho e Reesink (2011: 19), “os interesses locais anti-indígenas usam a mistura [devido a uniões interétnicas] como categoria de acusação da fraude étnica”. Ainda segundo os autores, “‘ser índio’ não se resume a parecer índio, no aspecto racial, em que pese a sociedade e o Estado usualmente exigirem dos grupos que exibam traços socioculturais ‘realmente indígenas’” (Ibid.: 17).

Muitas pessoas caracterizam os indígenas de forma muito preconceituosa, como se fôssemos bichos. Já ouvi muitos dizerem que índio é preguiçoso, que não gosta de tomar banho, é cachaceiro e vive com um cachimbo na boca. Eles pensam que não podemos ter coisas boas, comer em restaurante, andar de carro. “Onde já se viu índio com relógio no braço?”, dizem. “Eles alegam que, porque falamos português e usamos roupas, não somos mais índios, somos brasileiros comuns. É a ideia mais preconceituosa, mais racista que existe. Como se nenhum brasileiro pudesse ir aos Estados Unidos, como se, ao falar inglês, deixasse de ser brasileiro”, argumenta o cacique Babau. Para muitas pessoas, só são belos os trajes e adereços que usamos. Só somos lembrados em 19 de abril, no Dia do Índio, em uma comemoração que não leva em conta os problemas que enfrentamos. “Algumas pessoas querem transformar o Dia do Índio em folclore e outras querem a extinção total dos indígenas, para ficar contando como era o índio no passado”, observa o cacique Babau. Nessa ocasião, não são mencionados os massacres que os povos indígenas vêm sofrendo para ter suas terras demarcadas. As pessoas geralmente se lembram apenas das contribuições indígenas à alimentação, ao artesanato, à música e à língua portuguesa, e as crianças são vestidas “de índio”. É importante notar que usamos nossos trajes, nossa tanga, cocar e colares em momentos de ritual ou quando saímos da aldeia para participar de atividades do movimento indígena e reivindicar nossos direitos. A pintura, para nós, tem grande significado. “Ela nos identifica”, diz José Aelson. Além disso, quando estamos trajados e pintados, nos sentimos mais protegidos. “A pintura, para nós, é uma oração”, completa. Por meio dela, transmitimos o que estamos sentindo (alegria ou tristeza) e qual é a situação (paz ou guerra). “Quando você está pintando ou recebendo a pintura, ali há uma troca de energias, você está recendo uma força”, afirma José Aelson. Porém, com a pintura, nos destacamos mais, pois ela chama muita atenção. Muitas vezes, quando estamos pintados, passamos por situações desagradáveis. Nos momentos de acirramento do conflito pela terra, não podíamos andar pintados, pois isso colocaria em risco nossas vidas. Alguns dos meus entrevistados relataram casos de agressão verbal que sofreram por estar usando adereços de pena. Glicéria, por exemplo, foi certa vez a uma repartição da Secretaria Estadual da Educação, em Ilhéus, usando uma tiara de penas, e uma funcionária lhe disse que ela parecia uma galinha. Alzenar apresentou-me um relato parecido: viajava de ônibus, trajado com vestes e adereços indígenas, quando uma menina lhe perguntou: “Você está virando galinha? Cheio de penas na cabeça...”.

Vale notar que boa parte das concepções e opiniões sobre os povos indígenas é formulada a partir do que circula na grande imprensa. Não só em relação a nossa comunidade, mas a todos que lutam por direitos, a imprensa vem se revelando classista e preconceituosa, circulando informações muito negativas. Quando indígenas em luta pela terra são acusados ou presos, a imprensa costuma tratá-los como criminosos e só apresenta a versão dos indivíduos e grupos contrários à demarcação da nossa terra. Quando realizamos retomadas de terras, elas são noticiadas como invasões. A tendência da imprensa, como se vê, é deturpar a realidade, para favorecer determinados interesses. “A mídia não é democrática e popular. Ela é voltada para o Estado e voltada para as grandes corporações. Então, são poucos os espaços que as comunidades têm na mídia”, critica o cacique Babau. “Em nossa comunidade, temos uma organização perfeita, e eles não divulgam. Mas, se houver briga, confusão, miséria, eles aparecem logo”, completa.

Em 2014, o Jornal da Band publicou uma série de reportagens denunciando a “fraude que criou uma tribo de falsos índios” no sul da Bahia. Ao analisá-las, Alarcon e Navarro detectaram “numerosos dados equivocados” (2014). Além disso, as antropólogas observaram que, de sete entrevistados, três eram fazendeiros, detentores de áreas no interior da TI Tupinambá de Olivença; nenhum indígena foi ouvido pela reportagem. No artigo, as autoras recuperam ainda matérias de jornais de circulação local e nacional que frequentemente publicam textos discriminatórios, negando os nossos direitos, inclusive nosso direito à existência. Por exemplo, em 31 de agosto de 2014, A Região, de Itabuna, publicou um editorial extremamente ofensivo, ameaçando o meu povo. “Nem é preciso olhar muito para ver que a maioria dos que se dizem tupinambá não tem qualquer característica física de índio”, dizia o texto. Intitulado “Só restam as armas”, ele se referia aos Tupinambás como “malandros que nunca foram índios” e incentivava a população a nos atacar. Na mesma época, foram espalhados na região outdoors com imagens de homens armados e dizeres contra a demarcação.

“Uma análise da cobertura midiática da disputa contemporânea em torno do território tupinambá indica que a ampla maioria das peças jornalísticas alinha-se com a perspectiva de sujeitos e grupos contrários à demarcação, reverberando seus discursos”, concluem Alarcon e Navarro. Segundo as autoras, os jornais costumam publicar reportagens “claramente editorializadas”, com afirmações preconceituosas em relação ao meu povo. As emissoras de rádio locais, por sua vez, têm agido da mesma forma. O locutor do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, de Itabuna, chegou a propor, ao vivo, a realização de emboscadas contra o meu povo. É importante notar que, apesar de essas reportagens conterem dados claramente inverídicos e acusações sem provas, nenhum jornalista, até hoje, foi responsabilizado pelo conteúdo publicado. Além disso, esses textos têm motivado ações da polícia e têm influenciado a decisão de juízes contra o meu povo, atrasando o processo demarcatório. Como enfatizam Alarcon e Navarro, “oferecendo uma cobertura parcializada e discriminatória, os veículos de comunicação hegemônicos vêm contribuindo para a cristalização dos estereótipos sobre os povos indígenas no senso comum [...], perpetuando, assim, as violações historicamente cometidas contra o povo Tupinambá”.

[1] Ainda que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) adote como convenção a grafia de etnônimos

sem flexão de número, optei pela forma Tupinambás, no plural, mais utilizada em minha comunidade.

[2] Todos os depoimentos foram gravados e integralmente transcritos.

[3] Puxador de toré é a pessoa responsável por começar os cantos durante o ritual que chamamos de toré, no

qual nos reunimos em volta do fogo para entoar nossos cantos e bater o maracá, instrumento de percussão

feito com cabaça ou coco e sementes.

[4] Para saber mais sobre os Tupinambás da Serra do Padeiro, ver: Macedo (2007), Couto (2008), Magalhães

(2010), Ferreira (2011), Ubinger (2012) e Alarcon (2013). Ver também o documentário Tupinambá O

Retorno da Terra (2015), dirigido por Daniela Alarcon.

[5] Encantados são entidades que Deus deixou para cuidar dos rios, das matas, da natureza. São guardiões

que protegem toda a nossa nação – eles são como uma luz para nós.

[6] Jereré e munzuá são instrumentos que utilizamos para pescar.

 

*Jéssica Tupinambá, 32 anos, ativista, liderança indígena do povo Tupinambá, território Tupinambá de Olivença – BA. Representante do departamento Jurídico do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia – MUPOIBA, graduanda do curso de Direito na Faculdade de Excelência -Unex, apresentadora do Politica Sem Mistério- PSM, professora do Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, é pesquisadora, é graduada em administração pela Universidade de Uberaba- UNIUBE, Especialista em Gestão de Pessoas pela Faculdade de Ciências e Tecnologias- FTC, Especialista em Estado e Direito de Povos e Comunidades Tradicionais Universidade Federal da Bahia-UFBA. E foi coordenadora dos Jovens do Regional Leste Bahia, Minhas Gerais e Espirito Santo por quatro anos.