Cristianismo e preconceito de classe

Juliano Spyer*
| by hannah.dora@kooperation-brasilien.org

A relação entre evangélicos e o Brasil popular aparece no cenário de muitas e variadas igrejas presentes em bairros periféricos, entre negros e pardos com menos escolaridade e salários menores do que os da média da população.

A ideia de que o preconceito no Brasil entrelaça classe e raça coincide, por exemplo, com análises do sociólogo Florestan Fernandes, publicadas a partir dos anos 1960. Ele explicou como o racismo brasileiro toma a forma de uma hierarquia gradual de prestígio, baseada em critérios como educação formal, local de nascimento, gênero, histórico familiar e classe social. O fato de a pessoa ser negra ou parda não seria um impeditivo explícito para prosperar, mas a sociedade filtra de maneira indireta pessoas vindas de determinados contextos socioeconômicos – com acesso facilitado aos brancos – para determinadas funções e cargos.

Considere este exemplo, registrado durante minha pesquisa de campo: no cartório do bairro vizinho ao meu na Grande Salvador havia três funcionários negros jovens, bonitos e bem vestidos: duas mulheres e um homem. Eles trabalhavam quase em silêncio em comparação com a conversa miúda que acontecia na fila para o atendimento. Me chamaram a atenção os cabelos: os das mulheres eram alisados; e o do homem era raspado curto, no estilo militar. Isso não era incomum considerando como, em bairros periféricos como aquele, muitas mulheres sofriam bullying desde a infância e aprendiam rapidamente a domesticar suas cabeleiras usando produtos químicos e ferros quentes. Mas quis ver como eles percebiam esta situação e perguntei a uma das atendentes por que elas, tão bonitas naturalmente, alisavam os cabelos. A resposta foi direta e honesta: “Aqui, quem não alisa o cabelo, não passa na entrevista de emprego”.

Ou seja, para “parecer profissional” e, portanto, ter a oportunidade de acesso àquele tipo de emprego em escritório, as características afro do candidato deviam ser minimizadas. Semelhantemente, seguindo o argumento de Fernandes, na disputa por um cargo de engenheiro, a escolha pende para o candidato que faz parte da rede de contatos sociais de certas universidades, instituições que são menos acessíveis à população pobre. E assim as diferenças sociais se perpetuam sem que o racismo seja explicitamente culpado pela manutenção das desigualdades.

A obra da pesquisadora apresentada a seguir esmiúça e desenvolve estas descobertas, mas falando sobre o preconceito de classe.

Um dos livros mais importantes sobre as classes populares no Brasil foi escrito pela antropóloga americana Cláudia Fonseca, professora desde os anos 1980 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Um problema que ela aponta em relação a esse tema é como, no Brasil, as classes privilegiadas, inclusive os intelectuais, percebem os pobres de duas maneiras: com compaixão, quando ele é exótico e distante; ou com condenação, mesmo que benevolente, quando é um pobre urbano e, portanto, compartilha os espaços da cidade.

Fonseca explica que entre pesquisadores, se esse pobre não tem uma origem étnica ou história particular (como cigano, quilombola, índio), as características percebidas sobre ele geralmente estão associadas a degeneração ou patologia. E o “exotismo” pode ser relacionado também a distância ou proximidade. O favelado que vive longe pode ser idealizado, mas para os que habitam os mesmos espaços, os conceitos usados para falar sobre eles tendem a ser “violência”, “promiscuidade” e “famílias desestruturadas”.

Fonseca argumenta que essa maneira preconceituosa de perceber o pobre urbano é consequência do abismo que existe entre a elite cosmopolita e o “zé-povinho”. A separação está colocada em termos financeiros e culturais, criando “um sistema que, em muitos aspectos, pode ser comparado ao apartheid da África do Sul”.

Ela continua:

Entre ricos e pobres, existe pouco contato: eles não moram nos mesmos bairros, nem usam os mesmos meios de transporte. Para uns, há escolas particulares, táxis, médicos a US$ 100 por consulta. Para outros, a escola pública sucateada, os ambulatórios, os ônibus. Em resumo, para muitos brasileiros, os únicos momentos de contato interclasses se produzem na conversação com a faxineira ou durante um assalto. As barreiras de três metros de altura erigidas diante das casas burguesas são como uma metáfora do fosso quase intransponível entre os dois mundos. A histeria frente ao fantasma da violência urbana é o efeito colateral. Família, Fofoca e Honra, pág.108 e 2000

Essa distância entre ricos e pobres se traduz, para os brasileiros das camadas média e alta, no entendimento de que não existe diferença na maneira de viver e ver o mundo do pobre urbano que mereça ser analisado. Eles supostamente “pensam como a gente” e apenas têm menos dinheiro. Essa visão – expressa pela noção de “cultura da pobreza” – associa a condição de pobreza a famílias “desorganizadas” que reproduzem comportamentos “disfuncionais” transmitidos pelo convívio social, entre familiares e vizinhos.

De certo modo, os evangélicos criaram espaços de convivência exclusivos nos bairros pobres. Eles não são perseguidos pela polícia e por empregadores da mesma maneira como os outros moradores costumam ser. Ao mesmo tempo, eles continuam sendo o “outro”, estranho, que vem de fora, de cor mais escura, com gostos e valores diferentes dos das elites educadas. Um pobre que não aceita seu lugar

É importante mencionar a relação entre classe e preconceito para se ter uma visão crítica sobre a falta de interesse – e até a antipatia de alguns brasileiros das classes média e alta – para estudar e entender o Brasil popular; e consequentemente, para examinarem o fenômeno do cristianismo evangélico no país, que surge e ainda existe predominantemente nesse Brasil do “andar de baixo”.

Notar a existência dessa rejeição à temática do cristianismo evangélico é importante, porque ajuda a explicar por que muitas pessoas que falam ou escrevem sobre o cristianismo evangélico não têm muitas ferramentas conceituais para fazer isso. Não se trata, então, de negar que exista a questão do conservadorismo moral que traz consequências nocivas para a sociedade – por exemplo, em relação a pautas como a da legalização do aborto –, mas junto a isso existe uma tensão pelo fato de o crente ser negro e pobre e ainda por ele, em geral, não aceitar ser vitimizado e tratado como criança ou como uma pessoa incapaz.

Para a antropóloga americana Susan Harding, os cristãos evangélicos são um tipo de “outro”. São frequentemente rejeitados pelos antropólogos por não aceitarem a posição passiva de vulneráveis. Diferente de outros grupos da sociedade que aceitam ou se resignam a serem vistos como mais frágeis, os evangélicos geralmente não falam de si como vítimas do sistema, e essa rebeldia é um dos motivos para intelectuais que se colocam como porta-vozes de indígenas, quilombolas e mesmo de pobres urbanos, terem uma antipatia por eles, que dispensam essa intermediação para assumir a responsabilidade por se colocar na sociedade e interagir com ela.

Essa antipatia – que toma a forma de críticas vindas desses setores mais intelectualizados da sociedade – frequentemente rejeita o evangélico com argumentos contraditórios. Conforme nota a antropóloga Cecília Mariz, evangélicos são cobrados pelo que fazem ou deixam de fazer, pelo que falam ou deixam de falar. Por exemplo, evangélicos são acusados de alienação política, mas também são repreendidos por se meterem demais na política. Algumas vezes são vistos como muito dogmáticos e por terem postura fundamentalista, mas também são acusados de serem alienados, dedicarem muito esforço à salvação e por isso não se envolverem o suficiente com o mundo fora das igrejas; ou são flexíveis demais com sua fé e, portanto, são culpados de serem demasiadamente materialistas.

A mesma sensibilidade aparece também nas posições sobre religião, disseminadas pelos veículos da grande mídia. Dentro dessa perspectiva, “fazer a cabeça” iniciando-se no candomblé é chique, fazer mapa astral é tolerável, mas ser religioso não é. Ainda mais quando o religioso também rejeita ser humilde e submisso, por isso é acusado de ser manipulado ou de ser avarento por querer ter as mesmas coisas que seus críticos desfrutam: viajar, se vestir bem e ir a restaurante.

No Brasil, mesmo quem rejeita o catolicismo e suas práticas pode manter a visão de mundo hierárquica que existe dentro da lógica dessa religião. Segundo a perspectiva católica, o pobre entra no reino do Céu após aguentar, se manter submisso e dar a outra face para as injustiças que vier a sofrer durante a vida. Essa postura rejeita a ousadia pentecostal de não se perceber menor ou menos valioso como ser humano do que as outras pessoas; na verdade, ele se percebe como alguém excepcional que, com a ajuda de Deus, está atravessando grandes provações e leva uma vida digna.

A mesma lógica hierárquica do catolicismo repudia neopentecostais que abraçaram a teologia da prosperidade, querem mobilidade social, acesso ao mesmo tipo de consumo e às mesmas experiências que as camadas abastadas já têm. E agora pentecostais e neopentecostais são criticados e atacados por terem ambições políticas, apesar de esses projetos não serem os mesmos defendidos pelos representantes bem formados, com cursos universitários e pós-graduação na França.

O trecho acima faz parte do livro Povo de Deus, quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração 2020)

*Juliano Spyer é antropólogo e etnógrafo especializado em pesquisa sobre ambientes digitais, consumidores emergentes e cristianismo evangélico. Autor do livro "Povo de Deus", editor do Observatório Evangélico e columnista da Folha de São Paulo.