Brasil: sociobiodiversidade ameaçada, redemocratização e reconquista de direitos

| by tilia.goetze@kooperation-brasilien.org

Aderval Costa Filho*

Refletir sobre as ameaças à sociobiodiversidade brasileira, requer que consideremos a enorme variedade de povos e comunidades tradicionais, biomas e ecossistemas do país. Normalmente, as preocupações internacionais recaem sobre a Amazônia Legal e seus povos, mas neste artigo hoje gostaria de enfatizar os povos e comunidades que possuem modos de viver relacionados ao Cerrado, bem como a situação de vulnerabilização dos povos e comunidades tradicionais do estado de Minas Gerais.  

O bioma Cerrado já foi ressaltado pela sua dimensão (25% do território nacional, perfazendo uma área de aprox. 2 milhões de Km², abrangendo mais de 10 estados brasileiros), pela importância da sua biodiversidade (responsável por 30% da biodiversidade brasileira), pelo seu papel no armazenamento e reposição de água para alimentar as principais bacias hidrográficas brasileiras (Mazzetto, 2006), bem como pelo papel fundamental que desempenha na expansão da fronteira agrícola e crescimento da produção de commodities e biocombustíveis.

Nas últimas décadas, a fronteira agrícola avançou para a região norte do bioma, então denominada MATOPIBA, que compreende parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Com isso, quase metade do Cerrado foi convertida em pastagem (29,5%) ou área de cultivo (11,7%), e apenas uma pequena porção (8,2%) do bioma é formalmente protegida por parques ou territórios indígenas. As terras indígenas sozinhas representam 58% do número total de áreas sob alguma forma de proteção no Cerrado. 95 terras indígenas já foram identificadas, demarcadas e/ou regularizadas. Eles cobrem uma área total de cerca de 12,3 milhões de hectares, aproximadamente 4,3% da área do bioma. Somam-se os territórios das comunidades dos quilombos, das comunidades de fechos de pasto, dos retireiros do Araguaia, das quebradeiras de coco babaçu, dos apanhadores de flores sempre vivas, dos geraizeiros, dos pescadores artesanais, dentre outros povos e comunidades do Cerrado que têm desempenhado um papel significativo na conservação da biodiversidade do Cerrado.

Não obstante toda a sociodiversidade e relevância ambiental, econômica e social do Cerrado, são constantes as violações de direitos e os crimes ambientais. Na audiência final do Tribunal Permanente dos Povos (TPP)[1] dedicada às violações dos direitos humanos, ambientais e territoriais dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado e seus modos de vida (7-10 de julho de 2022), foram apresentados 15 casos referentes a contextos de graves e sistemáticas violações de direitos, mas também de grande resistência por parte de suas pessoas e comunidades, localizadas nos estados da Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí e Tocantins.

Os crimes contra os povos do Cerrado e seus territórios foram identificados com base no Estatuto do TPP, na Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Declaração de Argel), na legislação nacional e internacional existente sobre proteção dos direitos humanos, dos povos e do meio ambiente. Os 15 casos apresentados[2] “evidenciam violações de direito de forma sistemática - no tempo e no espaço - o que representa dano grave de destruição do Cerrado” que, “além de afetar o mínimo ecológico das presentes e futuras gerações de habitantes do Cerrado como um todo, a diminuição dos benefícios ambientais do Cerrado, representa uma ameaça à dimensão concreta da dignidade humana dos seus povos e comunidades tradicionais, atingindo a própria condição de reprodução social e permanência dos povos do Cerrado como povos culturalmente diferenciados”.

A Campanha denuncia que está em curso um processo de ecocídio do Cerrado, entendido “como os históricos e graves danos e vasta destruição promovida pela expansão acelerada da fronteira agrícola e mineral sobre essa imensa região ecológica ao longo do último meio século”. E, como consequência, um processo de genocídio [cultural], como “extermínio discriminatório de povos, de identidades e da diferença”. Os atores responsáveis são o Estado brasileiro, Estados estrangeiros, organizações multilaterais e agentes privados nacionais e estrangeiros (Tribunal Permanente dos Povos, 2022).

Assim, tratar da sociobiodiversidade brasileira e mineira requer também repensarmos esses tempos de retrocesso do Estado democrático de direito, particularmente os dois últimos governos (Michel Temer e Jair Bolsonaro), quando a “violência nua” foi exposta sem quaisquer constrangimentos (Bronz, Zhouri e Castro 2020). Requer que pensemos o avanço vertiginoso de projetos hegemônicos (mineração, monoculturas de eucalipto e outras, obras e empreendimentos, grilagem empresarial e especulação imobiliária, implantação de fazendas solares - energia solar, dentre outros) sobre territórios dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais e que recuperemos um pouco do processo de vulnerabilização desse público e precarização dos seus direitos e modos de vida.

Mas antes da “violência nua”, já vinha sendo pavimentada nos últimos governos o caminho da “violência lenta” operacionalizada no âmbito das instituições e na relação com povos atingidos e afetados. São efeitos dessa violência lenta: os processos de flexibilização da legislação ambiental para fins de licenciamento de obras e empreendimentos; o desmonte dos órgãos e políticas responsáveis pela garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais; a não dotação orçamentária de programas e ações vitais a esses grupos; os entraves aos processos administrativos de regularização fundiária dos seus territórios; as sucessivas tentativas de desconstrução dos direitos conquistados; as tentativas de deslegitimação de autoafirmações identitárias coletivas; a extinção e o esvaziamento político de instâncias de controle social; dentre outros.

Neste contexto, os processos de regularização fundiária dos territórios de comunidades quilombolas e de comunidades tradicionais ficaram estagnados, acentuaram-se os conflitos no campo, com processos desproporcionalmente violentos de reintegração de posse, ataques e intimidação das comunidades por antagonistas, agravados pela pandemia por Covid19.  Embora as ações de reintegração de posse tenham sido suspensas durante a pandemia pelo Supremo Tribunal Federal (abril de 2021 a outubro de 2022), havendo uma espécie de trégua nessa luta desigual, intensificaram-se nesse mesmo período, o cumprimento das etapas dos processos de licenciamento ambiental de obras e empreendimentos, com o aval do Estado e em prejuízos às comunidades tradicionais.

Também houve a tentativa de regulamentar, no nível estadual (Estado de Minas Gerais), por meio da Resolução Conjunta nº 01 da Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDESE) e Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), a Consulta Livre, Prévia e Informada aos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT’s) que podem vir a ser afetados por medidas legislativas ou administrativas.  Direito este estabelecido pelo Art. 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (em vigência no Brasil por determinação do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004).

O lançamento da referida Resolução conjunta SEDESE/SEMAD foi acompanhado pela tentativas de promover a construção de Protocolos Comunitários de Consulta em meio virtual, em contextos de baixo ou precário acesso à internet pela comunidades locais, tudo isso como forma de acelerar licenciamentos e favorecer empreendedores e empreendimentos, vulnerabilizando direitos e precarizando cada vez mais os modos de vida desses grupos.

A dita Resolução promove uma inversão na ordem dos direitos dos povos e comunidades tradicionais: afirma que a consulta deve ser feita quando estes povos e seus territórios estejam se sobrepondo aos territórios dos empreendimentos e não o contrário; utiliza as categorias naturalizadas dos processos de licenciamento - área de impacto direto e indireto – sendo que a consulta somente deve ser feita às comunidades diretamente afetáveis/atingíveis; estabelece prazo de 45 dias para que as comunidades construam seus Protocolos Comunitários de Consulta; deixa claro que se não houver protocolos de consulta, o próprio empreendedor (por exemplo, a Mineradora) pode contratar assessoria técnica para promover a sua construção e, em último caso, o próprio empreendedor é confiável para proceder à consulta nos seus próprios moldes, sem prejuízo às etapas e prazos do licenciamento; desonera o estado dos procedimentos administrativos (o empreendedor paga a conta e, leia-se, “determina sua vontade” ao estado), bem como desresponsabiliza o estado da proteção devida a esses grupos; dentre outros absurdos.

Cabe ressaltar que a Resolução traz um vício de origem. Foi construída, aprovada e publicada sem qualquer participação dos membros da Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT), ou seja, fere o princípio ou direito que pretende proteger, o direito das comunidades serem consultadas quando se tratar de medida legislativa ou administrativa que as afetem.

Importante salientar que no Brasil não há regulamentação do artigo 6º da Convenção 169 da OIT porque o art. 6º é autoaplicável, sua regulamentação pode ferir o próprio preceito legal, uma vez que cada povo ou comunidade tem direito de ser consultado nos seus próprios termos ou modos, além do que seria um rito a ser seguido pelos grandes empreendimentos, no sentido de acelerar o licenciamento e consolidar a exploração minerária, expropriando povos e comunidades locais, violando direitos.

Cabe ressaltar que os movimentos sociais, os núcleos de pesquisa das universidades, as organizações de base, as advocacias populares e frentes parlamentares aliadas aos povos e comunidades tradicionais seguem se articulando no sentido de revogação da referida Resolução Conjunta.

O posicionamento do Governo de Minas Gerais demonstra, assim, um claro alinhamento com os interesses dos empreendimentos privados, sobretudo minerários, deixando os povos e comunidades tradicionais à margem do poder de decisão sobre o impacto em seus territórios e modos de vida. Como vimos, tal normativa alinha-se também à atuação do governo federal vigente à época, cuja balança pesou, indiscriminadamente, em favor dos empresários e contrariamente aos povos e comunidades tradicionais. 

A medida acima exposta se enquadra no entendimento de construção de “dispositivos infralegais, negociados nas instâncias deliberativas dos atos administrativos do licenciamento” (Bronz, Zhouri e Castro 2020: 31), ou num sentido mais amplo, se enquadra no que tem sido chamado de “infralegalismo autoritário” (Vieira, Glezer e Barbosa 2022), uma das marcas do governo Bolsonaro.

Segundo os autores, o método do infralegalismo autocrático do governo Bolsonaro se caracteriza pela desestabilização do controle e da participação social no governo, por mudanças burocráticas, pela a subversão de políticas públicas por decreto, pela omissão governamental como forma de frustrar valores e objetivos constitucionais, bem como pela  intervenção direta em órgãos de fiscalização e controle (Vieira, Glezer e Barbosa 2022: 593).

No geral, temos notado que tanto o governo do estado de Minas Gerais, quanto o último Governo Federal, primando por um dos princípios da administração pública, o princípio da “legalidade”, resolveram revisar todos os atos administrativos de governos anteriores, que tenham representado avanço na efetivação de direitos de reconhecimento formal da identidade coletiva e direitos de regularização fundiária das comunidades quilombolas e das comunidades tradicionais, com instituição de auditorias internas, ameaças de processos disciplinares aos servidores/as, tudo para questionar a prática antropológica, a política pública de regularização fundiária, e não cumprir o estabelecido pela Constituição Federal: a titulação dos territórios.

Aos 30 de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito novamente Presidente, trazendo novo alento ao povo brasileiro. E com praticamente 90 dias de governo, além da restruturação dos órgãos de governo e criação do Ministério dos Povos Indígenas, garantiu o pagamento do Bolsa Família, recriando o programa; retomou o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos, com reajuste e prioridade para mulheres, negros e indígenas); recriou o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e restabeleceu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf); em termos de meio ambiente e mudanças climáticas, mudou a estrutura organizacional do Ministério das Relações Exteriores, estabelecendo a Secretaria de Clima, Energia e Meio Ambiente; restabeleceu o combate ao desmatamento na Amazônia, no Cerrado e nos demais biomas brasileiros, recuperando o protagonismo do Ibama; determinou a reconstituição do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente); restabeleceu o Fundo da Amazônia e viabilizou a utilização ou liberação de 3,3 bilhões em doações internacionais para combater o crime ambiental na Amazônia; revogou medida do governo anterior que incentivada o garimpo ilegal (chamado de “mineração artesanal”) na Amazônia, em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental; como medida emergencial, combateu a desassistência sanitária em que se encontravam o povo indígena Yanomami, instituindo Comitê de Coordenação Nacional para enfrentamento e uma série de medidas para combater o garimpo ilegal e apurar crimes de genocídio e crimes ambientais no território indígena; titulou o quilombo de Brejo dos Crioulos em Minas Gerais, primeiro quilombo titulado pelo INCRA/Governo Federal no estado; reinstituiu o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, agora junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima; dentre outras medidas.

Temos expectativa que o Governo Lula retome os investimentos na reforma agrária, inclusa a regularização e proteção dos territórios indígenas e dos povos e comunidades tradicionais, por entender que a questão da democratização do acesso à terra/território constitui cláusula pétrea da nossa Constituição e fez parte da governança na democracia brasileira durante mais de cinco décadas, constituindo fator aferidor do quanto o Estado foi/é democrático.

Embora o novo Governo Federal seja um alento às nossas lutas e nos inspire a retomar com mais ânimo e determinação a nossa atuação pela efetivação de direitos dos povos e comunidades tradicionais, o nosso estado de Minas Gerais continua entregue a interesses internacionais, sobretudo às iniciativas das matrizes minerárias, monocultoras e energéticas.

 

Referências:

BRONZ, D., ZHOURI, A., & CASTRO, E. 2020. “Apresentação: Passando a boiada: violação de direitos, desregulação e desmanche ambiental no Brasil”. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, 49: 8-41.

MAZZETTO, Carlos. Eduardo. 2006. Os cerrados e a sustentabilidade: territorialidades em tensão. Tese (Doutorado em Geografia). Niterói: Universidade Federal Fluminense.

TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS. 2022. Tribunal Permanente dos Povos: 49ª sessão em defesa dos territórios do Cerrado (2019-2022). Roma: TTP, 128p.

 

* Aderval Costa Filho – Pós-doutor em Antropologia pelo Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement (CIRAD - Montpellier-Fr); Mestre e Doutor em antropologia social pela Universidade de Brasília; Professor Associado do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Ex-coordenador da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, hoje Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT.

 

[1] O Tribunal Permanente dos Povos (TPP) é um tribunal internacional de opinião ou de consciência, criado em 1971 e com sede em Roma. Tem como principais funções, de acordo com seu Estatuto de 2018, ser: um tribunal de visibilidade, do direito à palavra, de afirmação dos direitos dos povos expostos a graves e sistemáticas violações por parte de atores públicos e privados, nacionais e internacionais; uma ferramenta para explicitar e determinar a existência, a gravidade, a responsabilidade e a impunidade das violações cometidas, assim como as medidas de justiça e reparação devidas.

[2] Ver casos: https://tribunaldocerrado.org.br/casos/