Violência de Gênero e eleições 2022: Como a “lógica do favor” sucatea a rede de proteção à mulheres, e amplia a exposição de mulheres à violência institucional?

| by praktikum@kooperation-brasilien.org

Múltiplos fatores podem determinar o acesso e o não acesso de usuárias à rede de proteção às mulheres: alguns relacionados às dinâmicas culturais próprias da vida das mulheres; uns produzidos por suas condições materiais de vida, sobretudo por aspectos econômicos; e outros conectados diretamente com a forma como essa rede de proteção está predisposta física, organizacional e conceitualmente. No entanto, todos esses fatores guardam como fundamento comum o fato de que são produzidos por desigualdades estruturais da nossa sociedade: desigualdades raciais, sociais, territoriais, de gênero e sexualidade.

Dos obstáculos no fluxo de atendimento e acompanhamento de mulheres vítimas da violência de gênero, apontados em pesquisa recente realizada pelo Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, se destaca da escuta das profissionais que atuam na rede de proteção na região metropolitana do Rio de Janeiro a recorrência de episódios em que a descontinuidade ou baixa interlocução entre os serviços resulta de conexões e/ou interesses pessoais. 

Ou seja, embora a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres esteja alicerçada na concepção de trabalho em rede, essa percepção do trabalho em certos momentos aparenta ser vaga. No decorrer das entrevistas, todos os serviços que fazem atendimento e acompanhamento de mulheres destacam, em diversos momentos, que servem tanto como porta de entrada para o acesso a serviços, como também são o destino de usuárias que passaram por outros serviços. Nessa perspectiva, os equipamentos ouvidos apontam a execução de uma atuação em fluxo. Todos destacam interlocução entre equipamentos de saúde, assistência, defensoria pública, judiciário, conselho tutelar, delegacias, organizações da sociedade civil, entre outros.

No entanto, em diversos relatos, é como se a orientação do serviço em fluxo dependesse mais de relações interpessoais dos técnicos que operam o equipamento do que de uma orientação normativa da política que orienta o funcionamento daquele serviço. Foi sinalizado por parte de diversas entrevistadas que as parcerias para encaminhamento aconteciam por conexões pessoais, como “a secretária é minha amiga” ou “tenho ótima relação com a guarda, e ela me atende rápido”. 

Essa não é uma característica específica de uma cidade ou de um determinado serviço, esse obstáculo é o legado de uma sociedade que se fundamenta assentada sobre o patrimonialismo, em relações mediadas pela troca de favor e pelo trato da máquina pública como negócio privado. Longe de afetar somente o fluxo de encaminhamentos, essa cultura do favorecimento pessoal, em detrimento do interesse público, é produto e produtora de outras formas de descontinuidade do trabalho.

Produto da fragilidade no financiamento e descontinuidade do trabalho na política de proteção  e reflexo de uma falta de comprometimento político no enfrentamento à violência contra a mulher e produtora da instabilidade da manutenção da atuação da rede, ao alimentar uma lógica de encabidamento de empregos, principalmente em anos eleitorais, incidindo na vinculação laboral frágil das equipes técnicas.

Este quadro tem colocado profissionais numa situação de vigilância permanente, pois o tempo que poderiam estar aprimorando suas atuações é gasto com estratégias de manutenção, não só da política pública, mas também de suas atividades laborais. Vale ainda ressaltar que este é um quadro comum em todas as cidades nas quais realizamos entrevistas, e nos coloca diante da responsabilidade de reafirmar, que fortalecer a política de enfrentamento a violência contra mulher, além de passar pela implementação de equipamentos e ampliação dos serviços, passa também por fortalecer suas equipes técnicas, e garantir a elas, condições dignas de atuação.

Este artigo foi publicado originalmente no site do Observatório de Favelas com base na publicação "Violência contra mulheres e letalidade feminina no Rio de Janeiro" realizada pelas seguintes autoras: 

Raquel Willadino, Thais Gomes, Natalia Conceição Viana, Heloisa Melino, Isabele Sales dos Anjos, Aline Maia Nascimento