As reformas precarizantes e a resistência do sindicalismo brasileiro

| by tilia.goetze@kooperation-brasilien.org

Waldeli Melleiro

Desde seu processo de reorganização no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, no contexto de luta contra a ditadura militar, o movimento sindical brasileiro tem sido um ator político importante na construção da democracia no Brasil. Imprimiu sua marca no movimento por eleições diretas nos anos 1980, na aprovação da Constituição cidadã de 1988 e na resistência às ofensivas neoliberais de retirada de direitos nos anos 1990. Foi uma força fundamental de sustentação e pressão durante os governos progressistas dos anos 2000, de Lula, ex-sindicalista e primeiro operário eleito presidente da república, e de Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar esse cargo.

Esses governos alteraram a imagem do país no exterior e a sua realidade interna, tirando-o do mapa da fome da ONU, efetivando políticas sociais de redução da pobreza e de inclusão social com participação. Essas políticas foram alcançadas também por pressão das centrais sindicais brasileiras, que tiveram uma postura propositiva em diversas iniciativas, como a negociação e conquista de uma política nacional permanente de valorização do salário-mínimo, acordada em 2007 e vigente até 2016 (ano da interrupção do governo Dilma Rousseff).

Porém, assim como o sindicalismo internacional, os sindicatos no Brasil têm sofrido revezes e vêm sendo desafiados por reformas que retiram direitos e precarizam as relações trabalhistas, além de sofrer ataques diretos que visam esvaziá-los e deslegitimá-los.

Golpe na democracia e na classe trabalhadora

O golpe parlamentar-institucional que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2016, revelou-se também um golpe à democracia e à classe trabalhadora. Teve como resultado grandes retrocessos políticos, sociais, laborais, ambientais e culturais.

Com a adoção das políticas de austeridade, o governo Temer deu início um ciclo de desmonte das políticas públicas de proteção social, começando com a aprovação da Emenda Constitucional 95, ainda em 2016, que congelou os gastos públicos por 20 anos, com graves implicações para a saúde e a educação – políticas públicas que afetam mais especialmente as parcelas mais carentes da população, as mulheres e os trabalhadores. Essa situação foi agravada com o aprofundamento da crise econômica que ampliou o desemprego, a desproteção social e a miséria.

O segundo grande retrocesso se deu com a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que alterou mais de 100 artigos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Com a promessa de criar 6 milhões de empregos formais, seu efeito foi pífio: de novembro de 2017 a março de 2020, foram gerados 286,5 mil postos de trabalho[1]. A reforma aprofundou a deterioração do trabalho ao legalizar os contratos de trabalho atípicos e precários e fragilizar a Justiça do Trabalho. Ela também fragilizou a organização sindical por extinguir a contribuição sindical, principal fonte de financiamento dos sindicatos, e por diminuir o seu poder de representação e negociação coletiva, inclusive abrindo espaço para criação de comissões de representação de empregados nas empresas sem diálogo com os sindicatos e em concorrência com eles. Em relação às trabalhadoras, a reforma abriu a possibilidade de a gestante trabalhar em local insalubre e de não ser mais obrigatório um salário igual para trabalho de igual valor entre homens e mulheres – temas que foram remetidos para a “livre negociação”.

A eleição de Bolsonaro em 2018, governo de extrema-direita apoiado por setores conservadores do empresariado, dos militares e das igrejas fundamentalistas, foi acompanhada de propostas econômicas que recolocaram a agenda liberal no centro do debate: reforma da previdência, “modernização” do Estado e privatização das empresas estatais. Entre suas primeiras medidas extinguiu o Ministério do Trabalho e Emprego e propôs a chamada “carteira verde amarela”, que significava a possibilidade de contratos de trabalho com menos direitos do que os previstos na Lei.

A reforma da previdência, aprovada em novembro de 2019, instituiu a idade mínima para aposentadoria em 65 anos para homens e 62 para mulheres, vinculada a um tempo mínimo de contribuição para o sistema. Essa situação penaliza as pessoas que começam a trabalhar muito jovens e as que se encontram na informalidade e, portanto, não contribuem para o sistema e não conseguirão acumular as contribuições necessárias para se aposentar.

Com a pandemia de Covid-19, o governo editou medidas voltadas à economia e ao trabalho (MPs 936/2020 e 927/2020[2]) que aprofundaram a lógica da reforma trabalhista de 2017 ampliando a liberdade das empresas para estabelecer regras nas relações de trabalho sem a necessidade de negociação, reforçando o quadro desfavorável aos trabalhadores. Em todo o mandato, o presidente não apresentou nenhuma proposta de geração de emprego e renda ou de incentivo à retomada da indústria nacional. Em agosto de 2021, havia cerca de 13,7 milhões de pessoas desempregadas e mais de 31 milhões das que participam da força de trabalho eram consideradas subutilizadas. Hoje mais de 20 milhões de pessoas passam fome no Brasil e o país voltou a integrar o Mapa da Fome da ONU.

Velhos e novos desafios para a representação sindical

A situação geral do mercado de trabalho – caracterizado por elevado desemprego, altíssima informalidade, generalização da terceirização e de formas flexíveis de contratação, aumento do teletrabalho, incremento do trabalho por plataformas digitais dos trabalhadores pseudo autônomos ou “empreendedores” - tem colocado muitos desafios para o sindicalismo organizar e representar o conjunto da classe trabalhadora. Há um limite de representação do sindicalismo, que praticamente se restringe aos assalariados com contratos formais de trabalho.

Além disso, a existência de milhares de sindicatos de trabalhadores (cerca de 11 mil), muitos deles frágeis e sem poder real, somada às ambiguidades da legislação sindical (KREIN e DIAS, 2017), que por um lado oferece salvaguardas para os sindicatos e por outro lado impõe formas de controle e tutela sobre sua ação, historicamente tem  limitado a construção de um poder sindical mais sólido, principalmente em conjunturas políticas adversas. Alterar a estrutura sindical para um novo sistema que garanta liberdade e autonomia sindical é um velho desafio que precisa ser superado.

Resistindo ao desmonte de direitos

O cenário de crise tem colocado o sindicalismo numa postura defensiva. Pergunta-se qual será sua capacidade de lidar com os velhos e novos desafios e de reinventar-se.

Apesar das adversidades, há experiências inovadoras de organização sindical, com a criação de sindicatos de trabalhadores por aplicativos e de trabalhadores ambulantes, e de filiação de trabalhadores informais, como no exemplo da construção civil. São tentativas de ampliar a organização e a proteção laboral desses trabalhadores e trabalhadoras.

Em relação às reformas, mesmo tendo realizado uma das maiores greves gerais em 2017, com a adesão de 35 milhões de trabalhadores, contra as reformas da previdência e trabalhista, o sindicalismo não foi capaz de evitá-las. Se por um lado as ações conjuntas entre as centrais sindicais perderam fôlego no período 2015-2018, por outro foram realizadas muitas manifestações conjuntas com outros movimentos sociais, em particular com o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e com o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

A partir de 2019, no entanto, as graves crises já mencionadas tiveram o efeito de aproximar novamente as centrais sindicais, que realizaram um inédito 1º de Maio unificado nesse ano, repetido em 2020 e em 2021 de forma virtual. Graças à pressão conjunta das centrais, no início da pandemia foi conquistado o auxílio emergencial de R$ 600,00 (cerca de EUR 100) e de R$ 1.200,00 para mães chefes de família. Várias campanhas têm sido realizadas em defesa do emprego, da renda e da saúde dos trabalhadores, bem como campanhas de solidariedade para doação de alimentos.

As centrais sindicais têm tido uma postura de união – o que nem sempre se viu – e criaram o Fórum das Centrais Sindicais, do qual participam 10 centrais[3]. Os sindicalistas parecem convergir para a necessidade de construir uma ampla frente em defesa da democracia e da reconstrução do país através de um projeto de desenvolvimento nacional de desenvolvimento sustentável, que crie empregos de qualidade e valorize a agricultura familiar, entre outros. Em dezembro de 2021, foi anunciada a organização de uma nova Conferência da Classe Trabalhadora (Conclat), proposta para abril de 2022, com o intuito de aprovar uma plataforma a ser entregue aos candidatos à presidência no próximo ano. O sindicalismo segue na resistência buscando manter seu protagonismo político, consciente de que as eleições de 2022 serão fundamentais para definir o futuro da classe trabalhadora.

 

 

Referências bibliográficas

GALVÃO, Andréia; CASTRO, Bárbara; KREIN, José Dari; TEIXEIRA, Marilane. Reforma Trabalhista: precarização do trabalho e os desafios para o sindicalismo. Caderno RH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 253-269, Maio/Ago. 2019.

KREIN, José Dari; DIAS, Hugo. Os caminhos do sindicalismo nos anos 2000. Revista Ciências do Trabalho, n.8, 2017.

MELLEIRO, Waldeli; STEINHILBER, Jochen. Brothers in Arms? Trade union politics under the Workers Party Governments. In Springer, The political system of Brazil, 2016.

VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto. Sindicalismo brasileiro: que caminhos seguir? Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil, 2020.

 

Sobre a autora:

Waldeli Melleiro é historiadora e diretora de projetos sobre gênero, trabalho e sindicalismo no escritório da Fundação Friedrich Ebert no Brasil.

Co-autora, junto com Jochen Steinhilber, de “Zur Sonne, zur Freiheit? Gewerkschaftspolitik in Brasilien” (publicado em VS Verlag, Das politische System Brasiliens, 2012) e de “El sindicalismo bajo el Gobierno de Lula”, junto com Reiner Radermacher (publicado em Nueva Sociedad, n. 211, Septiembre-Octubre 2007).

 

[1] Nova reforma trabalhista significa mais precarização - JOTA

[2] Medidas Provisórias 936/2020, que decretou o Programa Emergencial de Proteção ao Emprego e Renda (convertida na Lei 14.020/2020), e 927/2020 que dispôs sobre medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública.

[3] São elas: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical (FS), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), Intersindical Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora, CSP-Conlutas Central Sindical e Popular e Pública Central do Servidor.