O URGENTE ACORDO SOBRE A AMAZÔNIA BRASILEIRA: O FALSO DILEMA ENTRE PRESERVAR E DESENVOLVER

Artur Sgambatti Monteiro Pesquisador Associado do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade (IASS), Potsdam. Titular da Bolsa de Proteção Climática Internacional da Fundação Alexander von Humboldt. Karina Marzano Franco Pesquisadora Associada do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade (IASS), Potsdam. Doutoranda na Willy Brandt School of Public Policy da Universidade de Erfurt. Bolsista da Fundação Konrad Adenauer. Carlos Rittl Pesquisador Sênior Associado do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade (IASS), Potsdam.
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org


Bertha Becker, geógrafa brasileira que se dedicou ao estudo da Amazônia, a definia como a mais antiga e arcaica periferia do sistema capitalista mundial1. O modelo de ocupação colonial, denominado economia de fronteira, se baseava na ininterrupta incorporação de terras e exploração de seus recursos, ambos vistos como ilimitados. Tal visão foi predominante ao longo dos séculos e é, ainda hoje, reproduzida pelo Brasil. Devido ao atendimento à crescente demanda por commodities, a floresta possui um valor alheio à suas características próprias, respondendo a demandas externas. Contudo, um modelo de desenvolvimento para a Amazônia em bases sustentáveis é viável e poderia ser parte fundamental dos esforços de recuperação econômica do Brasil pós-pandemia.

Dilemas do modelo tradicional

O modelo de crescimento do Brasil para a Amazônia ainda se baseia na predação de recursos naturais, no saque de terras públicas e na conversão de floresta para produção agropecuária. Todavia, ao longo dos anos 90, cresceram tanto a preocupação com a escassez dos recursos naturais quanto a demanda social por práticas de ocupação e de uso do solo que conciliem crescimento e conservação com demandas locais. A Amazônia tornou-se o grande foco deste debate, que levou a uma série de ações em prol de um novo modelo de desenvolvimento, entre elas a Conferência da ONU Rio-92.

Após quase três décadas de acúmulo ímpar de práticas de conservação pelo Brasil, o país ainda não foi capaz de acordar um modelo sustentável de desenvolvimento para a Amazônia. O paradigma desenvolvimentista tradicional ainda é visto como prioritário por diferentes setores do país e bastante robusto no que tange a força de sua narrativa. O governo mantém a retórica da alta produtividade agrícola do país, da enorme quantidade de áreas preservadas e da impossibilidade de fortalecer a conservação, frente a uma necessidade indissociável de produção agrícola2

Frente a tal cenário, surgem dois questionamentos: 1) como fortalecer entendimentos que levem a uma valor(iza)ação da floresta em pé e de seus diversos serviços; e 2) como impulsionar uma narrativa que inclua novas práticas de crescimento verde.

Um novo caminho possível

Conforme o projeto Mapbiomas3, a Amazônia brasileira perdeu, entre 1985 e 2018, 47 milhões de hectares (área maior que a Suécia), dos quais 83% viraram pastagens e 12% plantações. Do total destas áreas, 86% estão abandonadas ou subutilizadas, normalmente por pecuária de baixa produtividade (<1 boi/hectare). No entanto, entre 2002 e 2014, o Brasil mostrou que crescimento não precisa estar vinculado ao desmatamento: apesar da diminuição de mais de 83% das taxas de desmatamento, o PIB da agropecuária aumentou4. Isso foi possível devido ao incremento da produtividade das terras já ocupadas associado à recuperação de áreas florestais degradadas. Este crescimento, porém, não se converteu em ganhos locais de mesma envergadura. Apesar de a Amazônia ter crescido acima da média nacional entre 1960 e 2015 (5,9% ante 4,1%), ela segue sendo a região mais pobre do país e apresenta problemas de distribuição de renda. 

Novas alternativas são possíveis. Estudo recente do WRI Brasil com a Coppe/UFRJ 5 aponta que uma retomada verde que promova inovação em diferentes setores, entre eles a agropecuária, pode incrementar o PIB em até R$2,8 trilhões, além de combater efeitos das mudanças climáticas. Abaixo exploramos três aspectos que devem estar presentes em um novo modelo de desenvolvimento: 1) diversificação da base produtiva e incremento tecnológico, 2) pagamentos por serviços ambientais e 3) mudanças climáticas.

A multiplicidade de produtos da Amazônia permite a diversificação de sua base econômica. Um estudo da UFMG evidencia que um hectare de açaí manejado pode gerar uma renda de R$26,8 mil, cerca de 10x mais que a soja6. Outro ponto, evidenciado por Caetano Scannavino, da ONG Saúde & Alegria, é o veneno de escorpião amarelo, que pode chegar à R$371.000,00/g. É importante considerar também receitas de medicamentos desenvolvidos a partir de produtos florestais. O Captopril, desenvolvido a partir do veneno de jararaca e patenteado nos EUA, movimenta anualmente cerca de US$8 bilhões.  Investimentos em ciência, tecnologia e inovação oferecem oportunidades de geração de valor que têm sido desperdiçadas, e levam à agregação de valor em mercados externos. Exemplos como o do açaí envolvem extensa mão-de-obra e baseiam-se em modelos associativos de produção que permitem a conservação da floresta e uma repartição mais capilar de dividendos.

No tocante aos serviços ecossistêmicos, é fundamental observar o suporte conferido pela floresta à produção agrícola nacional, como no caso do ciclo das águas no continente. Considerável parte do fluxo hídrico essencial à produção brasileira provém de sistemas chamados “rios voadores”, gerados e mantidos pela floresta em pé. Esses “rios”, provenientes de ciclos de evapotranspiração, irrigam a agropecuária nacional. Especula-se que tal volume de água seja pelo menos 2 vezes maior que o volume do próprio Rio Amazonas. A interdependência entre conservação da floresta e segurança hídrica é clara e deve ser valorada7.

Outra característica central é o papel do Brasil e da floresta na discussão global sobre as mudanças climáticas. O Brasil vinha sendo líder mundial sobre discussões acerca de posicionamento e trabalhos de compensação financeira, incentivando discussões como o REDD+. Simultaneamente desempenhava central papel multilateral de liderança do sul global, fomentando o multilateralismo e a cooperação internacional a partir de discussões ambientais. Apesar dos recursos disponíveis, lastreados por diferentes acordos internacionais, muitos custos dos serviços florestais não são considerados, limitando o alcance dos projetos existentes. A pauta não avançou por diversos motivos, entre eles embates de narrativas sobre a floresta.

Diversas possibilidades de geração de renda não são consideradas no processo de conservação da floresta. Tanto aqueles referentes às discussões regionais e globais, quanto outros que sequer são propriamente explorados, devido à falta de um projeto mais ambicioso. Manter a floresta em pé envolve diversas ações que podem levar à um dinamismo econômico nacional e a um reposicionamento do Brasil a nível global. Um acordo geral em prol de um novo desenvolvimento da floresta amazônica é inadiável.

Reposicionamento Brasileiro

A dicotomia preservação/desenvolvimento não se sustenta, como também cria narrativas deletérias que impedem a construção de alternativas para a retomada de um crescimento econômico inovador e sustentável no Brasil. Por um lado, a expansão da atividade agropecuária nacional deve respeitar a floresta e investir na melhora de sua produtividade. Por outro, um amplo arcabouço de políticas e incentivos deve repensar o desenvolvimento da Amazônia. Pontos fundamentais incluem a diversificação e fortalecimento de cadeias de valor baseadas na sua biodiversidade; inovação tecnológica; serviços ecossistêmicos; e o combate às mudanças climáticas.

Considerando a urgência de medidas para a retomada do crescimento econômico, entendemos que um Novo Acordo Verde Brasileiro deve passar pelo fortalecimento das unidades de conservação, regularização fundiária, desmatamento zero, e por um entendimento mais plural da floresta. Essas ideias encontram respaldo na proposta de Ismael e Carlos Nobre - Iniciativa Amazônia 4.08. Baseada no protagonismo da Amazônia, a iniciativa considera a biodiversidade, o desenvolvimento tecnológico e conhecimentos de povos originários e tradicionais como fundamentais. Em suma, uma Amazônia vista a partir da Amazônia.

Caso bem sucedido, um necessário acordo nacional sobre a Amazônia servirá de modelo para melhores práticas no mundo, e para o reposicionamento do Brasil na agenda ambiental global. Tal iniciativa deve trazer em seu bojo a capacidade que temos de criar compreensões empáticas sobre o outro e a possibilidade de sonhar novas realidades possíveis.

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Foto: Ribeirinho morador do Parque Nacional do Jaú (Autor Sgambatti Monteiro)

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[1] BECKER, Bertha K.. Geopolítica da Amazônia. Estud. av. [online]. 2005, vol.19, n.53 [cited  2020-08-19], pp.71-86.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=LWCUkkvL_yg&feature=youtu.be

[3] https://mapbiomas.org/

[4] http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates

[5] https://wribrasil.org.br/sites/default/files/af_neb_sumarioexecutivo.pdf

[6] https://revistapesquisa.fapesp.br/crescer-sem-destruir/

[7] NOBRE, Antônio D..O Futuro Climático da Amazônia: Relatório de Avaliação Científica. 2020.

[8] Ismael Nobre and Carlos A. Nobre (November 5th 2018). The Amazonia Third Way Initiative: The Role of Technology to Unveil the Potential of a Novel Tropical Biodiversity-Based Economy, Land Use - Assessing the Past, Envisioning the Future, Luís Carlos Loures, IntechOpen