Monocultura de eucalipto, comunidades rurais e escassez de água

estudo de caso da Chapada das Veredas, Vale do Jequitinhonha Brasil.
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Autores: Valmir Soares de Macedo, Flávia Maria Galizoni, Emília Pereira Fernandes da Silva, Vico Mendes, Erick José Simão de Paula, Alan Oliveira dos Santos

O Vale do Jequitinhonha, região semiárida a nordeste do Estado de Minas Gerais, Brasil, tem sua divisão geopolítica em três microrregiões, Alto, Médio e Baixo Vale, sendo que o Alto Vale, se caracteriza pela presença das chapadas, terras altas e planas e as grotas, marcadas por profundos vales originalmente com presença de água e terra fértil. Essa região é acometida por especificidades de ordem climática - passa por longos períodos de estiagem, cerca de 8 meses sem chuvas por ano, com altas temperaturas. Na década de 1970 o governo de Minas Gerais por meio de uma empresa estatal denominada Acesita se apropriou de grande parte dessas chapadas responsáveis pela recarga dos mananciais, que eram de uso comum das famílias que ali residiam.

Importante destacar o percurso dessa empresa, originalmente “Acesita”, para que se compreenda, a magnitude desse empreendimento que interfere fortemente no ambiente e nas condições de vida da população dessa região.

Em 1992, a Acesita foi privatizada e em 2001 fundiu-se com empresas europeias para formar a empresa europeia Arcelor (ACESITA, 2004). Em 2006 a Arcelor tornou-se parte da Mittal Steel Company, companhia indiana de siderurgia. Com esta fusão construiu-se um dos maiores grupos siderúrgicos do mundo, a ArcelorMittal (POSO, 2007). Em 2011 ocorreu o desmembramento da antiga Acesita do grupo ArcelorMittal, dando origem à Aperam.

Assim, desde meados da década de 1970, a monocultura de eucalipto, uma planta exótica nativa da Oceania com enorme capacidade de consumo de água e evapotranspiração foi implementada massivamente no Alto Jequitinhonha: são mais de 250 mil hectares, dentre os quais 126 mil são de apenas uma empresa, APERAM BIOENERGIA.

Fato é, que o monocultivo de eucalipto retirou matas nativas do bioma cerrado, que apresentava uma grande biodiversidade. Estudos apontam que o eucalipto evapotranspira por metro quadrado cerca de 6 litros de água/dia, enquanto as plantas nativas do Cerrado evapotranspiram aproximadamente 2,5 litros/dia, e quando no período mais seco, baixam esse índice para 1,5 litros de água/dia. Duas décadas após a implantação dessa monocultura, efeitos drásticos começaram a emergir com o secamento de nascentes e córregos.

A partir dessa realidade, realizou-se um estudo de caso na chapada das Veredas1 e em uma amostra de 6 comunidades rurais diretamente vinculadas a ela, à margem esquerda da microbacia hidrográfica do Rio Fanado: Gentio, Tanque, Poço D'água, José Silva, Campo Alegre e Campo Buriti, todas comunidades do município de Turmalina, Alto Jequitinhonha, numa parceria entre o Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (PPJ) formado por estudantes e professores da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica – CAV.

Esse estudoevidenciou um conjunto de dilemas e desafios que precisaram ser enfrentados ao curto, médio e longo prazo.

Um primeiro ponto é o secamento de fontes naturais d'água, que conduz a uma diminuição dos mananciais, a uma escassez estrutural de água na microbacia do rio Fanado e ocasiona um conjunto de desigualdades de acesso às fontes naturais. E o que significa isso?

Um problema muito grande para as comunidades rurais e para as populações locais. Pois pode chover muito bem no ano que as nascentes não vão voltar a correr, a vazão do rio Fanado não vai melhorar, vai aumentar só no período da chuva e das enchentes. Recuperar nascentes, e, consequentemente aumentar a vazão do rio, significa décadas e décadas de ações de conservação e recuperação ambiental.

Mas, a escassez estrutural traz consigo processos profundos de desigualdade de acesso a água. A pesquisa indicou que há famílias que têm disponível apenas 43 litros de água por pessoa por dia, em detrimento àquelas que podem conseguir mais água (até 200 litros por pessoa dia) por possuírem melhores condições de renda e não estão tão dependentes do atendimento do poder público por meio de caminhão pipa e outros, atendimento este que costuma ser muito precário. Então, a escassez traz consigo um acesso desigual às fontes que é mediado, principalmente, pelo critério de renda: menos renda menos água, mais renda, mais água. O que é muito perverso para se pensar possibilidades de desenvolvimento local.

Enquanto as comunidades rurais limítrofes a chapada das Veredas tem acesso restrito à água para consumo doméstico e um forte estrangulamento da produção agrícola familiar devido essa escassez, a empresa que ocupa o território da chapada detém o monopólio de acesso e uso da água que garante a produtividade em seus monocultivos.

As famílias dependem da vazão finita dos poços artesianos, dependem mensalmente do caminhão pipa que precisam solicitar à prefeitura para conseguirem ser abastecidas, dependem da construção e implementação de um conjunto de políticas e programas públicos que possibilita às comunidades a ter as fontes “construídas”. Há, nas comunidades pesquisadas, uma enorme insegurança hídrica no abastecimento.

A pesquisa indicou a enorme relevância de políticas e programas públicos para acesso à água, por meio das fontes construídas. Observou-se que se não houvessem programas e políticas públicas haveria muito mais dificuldade no abastecimento hídrico. Se não houvessem um grande esforço da sociedade e dos poderes para construir políticas de abastecimento, haveria um caos de abastecimentos das comunidades rurais e região. Haveria uma falta d'água quase que absoluta. Entretanto, há um processo estrutural de escassez de água em curso. De onde virá a água para esses reservatórios?

O caminhão pipa, os poços artesianos, estão tirando água de um lugar e levando para outro; quase sempre, fazem essa transposição sem nenhuma preocupação de, em contrapartida, criar ações de conservação dos mananciais. Novamente, as questões que se colocam para se pensar em soluções públicas sustentáveis de abastecimento são: há cuidados com as nascentes? Há zelo com as áreas de recarga e cabeceiras? Anualmente os custos hídricos, sociais e econômicos são colocados para as comunidades rurais e para a população do município de Turmalina, que afinal, paga a conta da destruição de mananciais causadas pela empresa com o aval do governo federal e estadual.

Uma reflexão importante que as comunidades rurais fizeram e neste trabalho é exposto, é o uso social e ambiental das chapadas. As chapadas compõem um ecossistema extremamente delicado e importante para a dinâmica das comunidades das sociedades locais: territórios fundamentais por serem áreas de recarga dos mananciais hídricos, por historicamente fazerem parte das atividades produtivas, agroextrativistas e aproveitamento de resíduos que as comunidades rurais desenvolveram conciliando uso com a conservação ambiental. Seria fundamental pensar sobre o uso social e ambiental das chapadas no provimento de água, no provimento de outros recursos da natureza, e principalmente, vinculado ao extrativismo e aproveitamento de resíduos madeireiros encontrados nessa chapada, no desenvolvimento social de toda a sociedade.

É um momento muito importante para se refletir se o bem comum é resguardado ao se destinar para um único uso monopolizado por uma única empresa uma chapada que tem tanta serventia para as comunidades rurais de seu entorno, para o abastecimento hídrico da população urbana, que compõem tantas necessidades ambientais e provê de água toda a sociedade.

Por fim, um elemento extremamente dramático observado por esse estudo foi o processo de monetarização do acesso à água. Água é recurso da natureza, um recurso comum da natureza, um direito humano pois nenhuma pessoa consegue ficar mais do que sete dias sem beber água. E esse direito humano está sendo comercializado, quem tem renda consegue comprar água, consegue armazenar água, consegue fazer barramento e prender a sua água. É o momento de a sociedade pensar que acesso a água não deveria ser visto como bem econômico ou como negócio. Água tem que ser pensada como direito humano fundamental, porque sem água não há desenvolvimento humano, não há desenvolvimento de nenhum território.



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1 A delimitação da chapada foi definida a partir das cotas altimétricas de 790 m a 860 m de altitude.