Erntrevista com Andrea Dip (A-Publica)

| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

No dia 18 de abril a organização Repórteres Sem Fronteiras divulgou o atual Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. O Brasil está na 105ª posição, perdendo três colocações em relação ao último ranking. A organização justifica a queda na classificação pelo aumento da violência no exercício da profissão, como o assassinato de jornalistas no ano passado.

Queria saber como você percebeu esses últimos meses em relação a liberdade de expressão e imprensa no país? O que mudou?

O Brasil é um dos países mais perigosos do mundo pro exercício do jornalismo. Isso não é novidade. Mas desde a eleição de Jair Bolsonaro a coisa piorou muito. Principalmente quem trabalha com direitos humanos, questões de gênero, quem faz denúncias contra o governo – enfim todos os jornalistas que trabalham com temas considerados tabus, sempre enfrentaram ameaças e discursos de ódio. Fazendo uma primeira análise, o que considero novidade com o novo governo é que tudo isso seja oficial. Que isso venha da parte do governo, que isso venha da parte do próprio presidente, de ministros etc.
Outra novidade é que tudo isso está sendo feito pelas redes sociais. Essa é uma característica do governo Bolsonaro. Ele faz os pronunciamentos dele pelas redes sociais. Ele teve uma campanha que foi feita basicamente através de correntes de Whatsapp e nas redes socais, muito
alçada pelas fake news. Essa campanha insuflou mesmo um ódio, um linchamento virtual.

Como se manifesta esse ódio? Pode dar alguns exemplos?

Bolsonaro bloqueia jornalistas no Twitter, ele chama qualquer reportagem de denúncia de “esquerdista”, ele expõe fotos de jornalistas, ele barra a imprensa nos eventos que ele participa. E aí quando você tem o presidente atacando jornalistas pessoalmente, os apoiadores também se animam. Bolsonaro tem eleitores muito entusiastas. São pessoas que gostam bastante de ameaçar jornalistas, gostam de expor e assim intensificam esse discurso de ódio e essa violência. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) fez um lançamento que mostra que só no período eleitoral foram 85 ataques pelas redes socais aos jornalistas. Mas isso já começou antes das eleições, quando a extrema direita estava se fortalecendo. Nesse período já tinha grupos de direita fazendo dossiês de jornalistas. A Agência Pública por exemplo aparece em um desses dossiês. Eu apareço também. Eles pegaram as nossas fotos, nossos perfis das redes socais, nomes, imagens de postes e nos classificaram: Quem eram os inimigos, quem era de extrema esquerda e tudo mais. Então um pouco antes das eleições já estava acontecendo.

Então durante e depois das eleições a situação ainda piorou?

Sim. Teve três episódios que foram bem marcantes. O primeiro ainda durante as eleições foi o ataque do Bolsonaro a repórter do jornal Folha de São Paulo, Patricia Campos Melo. Ela fez uma reportagem revelando o que seria um esquema de distribuição de mensagens em massa contra o PT no Whatsapp, financiado por empresários para favorecer sua campanha – uma operação ilegal no Brasil por vários motivos. Imediatamente começaram aparecer muitas fake news sobre ela, sempre com as mesmas caraterísticas. O Bolsonaro está processando a Folha e a repórter. Ela recebeu muitas ameaças e até teve que andar com seguranças durante algum tempo.
Outro ataque que aconteceu agora em março foi contra a repórter do jornal Estado de São Paulo, Constança Rezende. Em janeiro ela deu uma entrevista a alguém que se apresentou como estudante estrangeiro. A entrevista saiu de forma distorcida em um veículo francês e depois o site de direita Terça Livre fez sua interpretação ainda mais maldosa, com o título “Jornalista do Estadão: a intenção é arruinar Flávio Bolsonaro e o governo” quando ela em nenhum momento diz isso na entrevista. Então o presidente pega essa matéria e faz um tuíte dizendo que a jornalista queria arruinar Flávio Bolsonaro, buscar o impeachment do presidente e acabar com o governo. Junto com essa desinformação ele colocou um vídeo com áudios dessa conversa e uma foto da jornalista. Você pode imaginar o que virou a vida dela, né? Um inferno.
E também teve o caso do jornalista Philipp Lichterbeck da
Deutsche Welle Brasil. Depois de criticar o governo Bolsonaro, entre outros pela destruição do meio ambiente, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles ataca ele dizendo: “Lamentável que um canal público alemão escreva isso do Brasil. Essa sua descrição se parece mais com o que a própria Alemanha fez com as crianças judias e tantos outros milhões de torturados e mortos em seus campos de concentração...“.
Além de todas essas ameaças, o trabalho da imprensa foi super restringido durante a posse do Bolsonaro. O deslocamento de jornalistas foi proibido dentro do Congresso. Durante a posse também teve uma coisa muito horrível que aconteceu, que a repórter Mônica Bergamo contou. A assessoria do Planalto recomendou que os fotógrafos não levantassem demais as suas câmeras porque isso poderia ser identificado como um movimento suspeito, que poderia levar um “sniper” a bater o alvo.

W: Como vocês lidam com tudo isso, com essas ameaça “oficiais” do governo?

Estamos tomando cuidados redobrados. Na Agência Pública a gente sempre fez um trabalho muito sério de checar as informações antes de publicar as reportagens. Tudo que a gente publica passa pelo nosso jurídico. A gente sempre tomou todos os cuidados legais e éticos nas nossas reportagens. Então isso não mudou. Mas tem a questão da segurança das repórteres. A gente tem pensado em treinamento dos repórteres, tanto de segurança nas redes quanto a segurança em campo mesmo, porque é claro que a violência no campo está aumentando. Bolsonaro já liberou certo tipo de posse de armas em casa. Então a gente teve caso de repórteres que foram ameaçadas recentemente por pessoas dizendo que “agora era vez deles” porque o Bolsonaro agora é o presidente. A gente também reforçou a nossa segurança digital: No site, nas redes, na nossa comunicação interna.

W: Você já mencionou o grande papel das fake news durante a campanha. Como você lida pessoalmente com esse discurso marcado pelo ódio e informações falsas?

Tem uma coisa que eu pessoalmente tenho sentido, que é um misto de medo e frustração. Quando tenho a saúde emocional pra debater, as vezes eu converso “Por que está dizendo isso?” “Você está vendo que aqui tem um dado”… e as vezes isso se torna uma conversa produtiva. Geralmente quando você humaniza a conversa, quando se dirige diretamente a pessoa e fala “vamos conversar”, geralmente as pessoas tendem ser um pouco menos violentas.
Mas nem sempre basta dizer que as notícias são falsas. As pessoas escolhem as suas narrativas. As vezes as pessoas sabem que aquela é uma notícia falsa mas como ela vai de encontro ao que ela acredita, ela opta examinar essas notícias falsas mesmo sabendo que é mentira ou que não tem fontes confiáveis. E o jornalismo tem que lidar diretamente com isso. Por exemplo, eu faço uma reportagem, fico meses trabalhando nela, entrevisto pessoas, levanto dados e números, faço pedidos de lei de informação etc. e quando publico a matéria, alguém me chama de “esquerdista”, “petralha”, “mentirosa” e desqualifica tudo que fiz, né? Com isso a gente está vivendo também hoje.
Mas eu acho que os jornalistas ainda estão entendendo como se mover, como se manifestar, que papel a gente tem nesse momento, que papel a gente tem nesse governo, como a gente pode exercer nosso trabalho de uma forma saudável, segura e como a gente pode defender a democracia. É um processo. A gente está ainda descobrindo esse processo.

W: Você pesquisa muito sobre temas feministas como igualdade de gênero ou a violência sexual. Além de ser jornalista independente você também é mulher, um outro grupo que sofre desprezo pelos seus direitos. Quais são os impactos do gênero sobre o direito à liberdade de expressão no Brasil? Existe uma interseção entre os dois tipos de discriminação?

A: Sim. Acho de algumas maneiras. Por exemplo esses dois ataques maiores que contei no começo foram ataques contra mulheres. Nesse discurso e levante de ódio tem uma forte caraterística de misoginia. Não tenho dúvida em dizer que esse ódio vem com muita mais força em relação as mulheres e feministas. Acho a isso se soma a misoginia mesmo, que a gente também vive muito forte no Brasil desde sempre. Os grupos que apoiaram Jair Bolsonaro na campanha eleitoral foram na maioria grupos de religiosos conversadores. A gente teve uma coisa que foi inédita no Brasil, que foi o apoio de muitas denominações de igrejas evangélicas. Porque o Bolsonaro tinha esse discurso de segurança pública, esse discurso de “bandido bom é bandido morto” e que o cidadão tem que se defender e tem que ter arma. E esse discurso se cola com essas pautas morais, com o ódio a população LGBT e as mulheres. O próprio Bolsonaro foi processado e condenado por uma deputada, porque ele disse pra ela que não a estuprava porque ela não merecia. Ele também já disse que preferia que o filho dele morresse do que “virasse” gay. Aí a gente já pode ver quem é esse homem. Acho que esse discursos vem muito juntos: O ódio, o ódio a mulheres, o ódio as minorias, o ódio a população LGBT. A misoginia e a homofobia são muito presentes no discurso dele o tempo todo.

W: Esses discursos misóginos e homofóbicos também já se manifestam em práticas?
A: Sim. Temos uma ministra da pasta de Direitos Humanos que é pastora evangélica e como ação contra a violência de gênero propõe a criação de "sala cor de rosa" no Instituto Médico Legal para atender mulheres vítimas de violência por exemplo. Tem projetos de leis que são muito perigosos também. Tem alguns projetos de lei tramitando nas casas legislativas que querem tonar o embrião em cidadão. Isso significaria que o aborto seria proibido inclusive em casos de estupro, anencefalia ou risco de vida para a mãe – únicos casos em que o aborto é permitido no Brasil. O aborto seria proibido então também nestes casos e a mulher seria criminalizada com muitos anos de prisão – que já é um total absurdo muito grave. Em um destes projetos de lei
tem um artigo que as pessoas não prestam muita atenção, sobre a apologia. Se esse projeto de lei passar será muito fácil criminalizar jornalistas por fazer uma reportagem sobre a discriminação do aborto por exemplo. Não só jornalistas, mas também defensores de direitos humanos, mulheres que trabalham em organizações e falam sobre esse tema estão em risco de ser criminalizados.
A gente está vivendo um momento bem difícil. Então acho que sim, acho que esses assuntos se cruzam. Se é difícil ser jornalista no Brasil nesse momento, se é difícil ser mulher no Brasil nesse momento, é ainda mais difícil ser jornalista mulher sem dúvidas.



W: Mesmo sendo extremamente difícil, especialmente para as mulheres e minorias, os maiores protestos durante a campanha foram de mulheres. A crescente misoginia politizou as mulheres?

Não sei se politizou a maioria das mulheres mas tudo isso tem funcionado pra gente como gasolina. O movimento feminista tem se fortalecido muito. E dá pra dizer que as mulheres não estão recuando. A gente está indo pra rua, a gente fez grandes passeatas nas eleições com “ele não”. A gente está avançando. Não estamos perdendo a força. Não estamos entregando a coisa assim tao fácil. Mas também não temos escolha. Como disse Audre Lord: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.


W: Em fevereiro desse ano você foi convidada pela Fundação Rosa Luxemburgo para falar sobre tudo que está acontecendo no Brasil e veio para Alemanha. Qual foi a sua impressão daqui?

A: Uma coisa que me deixou muito feliz é que me senti muito bem acolhida por todas as pessoas que tive a oportunidade de conhecer – tanto pelos jornalistas, tanto pelos defensores de direitos humanos. Percebi que existe uma grande atenção por tudo que está acontecendo no Brasil. Pode aparecer que não, mas isso faz muita diferença para nós. Quando voltei para o Brasil contei para tudo o mundo, que fui bem acolhida e que vocês estão prestando muita atenção. A pressão internacional é essencial nesse momento que estamos vivendo. Este governo já votou atrás em muitos momentos por conta da pressão internacional, até demitiu e trocou ministros. Mas a atenção externa não só é extremamente importante porque pressiona o mercado e o governo, mas também porque faz que a gente não se sinta tão sozinho. É bom saber que tem gente olhando para cá. Dá um senso de comunidade.