Quando a Cidade Vai às Ruas

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Quando a Cidade Vai às Ruas[1]

Carlos Vainer[2] – 30/06/2013

I. A Fagulha e a Pradaria

1.1. Governantes, políticos de todos os partidos, imprensa, cronistas políticos e, mesmo, cientistas sociais foram pegos de surpresa pelas manifestações de massa que mudaram a face e o quotidiano de nossas cidades nos últimas semanas. Pela rapidez com que se espraiaram, pelas multidões que mobilizam, pela diversidade de temas e problemas postos pelos manifestantes, elas evocam os grandes e raros momentos da história em que mudanças e rupturas que à véspera pareciam inimagináveis se impõem à agenda política da sociedade, e, em alguns casos, acabem transformando em possibilidade algumas mudanças sociais e políticas que pareciam inalcançáveis.

1.2. Também surpreendente a maneira com que estes eventos extraordinários vêm desfazer, ao menos parcialmente, o paradoxo de uma sociedade urbana que, nos últimos 10 a 20 anos, viu os movimentos sociais rurais dominarem as pautas dos movimentos populares. Se no processo de democratização e nos anos 1980 o movimento operário e movimentos urbanos pareciam traduzir politicamente as contradições da modernização acelerada por que havia passado nossa sociedade nos últimos 30 anos, o período que se abriu nos anos 1990 apontou para uma espécie de “ruralização da luta social”. MST, (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra), MAB (Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), resistência de populações tradicionais à destruição de seus meios e modo de vida ocuparam o proscênio da arena política popular.

1.3. Aqueles que acompanham ou estão engajados nas lutas urbanas sabem que, há muito tempo, multiplicavam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Quantas reuniões, acadêmicas ou políticas, foram consagradas a analisar e/ou lamentar a fragmentação? Há quanto tempo os militantes se vêem às voltas com as dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de luta com diferentes focos e bases sociais?

1.4. O que provocou esta unidade que tantos desejaram e outros tantos procuravam evitar? Em termos imediatos e conjunturais, a resposta provavemente está na arrogância e brutalidade dos detentores do poder. Seu autismo social e político, sua incapacidade de perceber a velha toupeira[3] que trabalhava no subsolo do tecido social, promoveu, em poucos dias, aquilo que militantes, organizações populares e setores do movimento social urbano vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Não é a primeira vez que isso acontece na história. Aconteceu agora entre nós.

Uma fagulha pode incendiar uma pradaria, dizia Mao Tse Tung[4]. Ora, qualquer esforço de análise que pretenda examinar os processos em curso desde uma perspectiva histórica deve dirigir seu olhar não para a a fagulha que deflagra o incêndio, mas para as condições da pradaria, que, estas sim, explicam porque o fogo pode se propagar. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se.

Essa pradaria são as nossas cidades. O que aconteceu em nossas cidades nos últimos anos que as preparou para tornar-se não apenas o cenário, mas também, e sobretudo, o objeto e alvo das lutas de milhões?

II. A cidade neo-liberal: empresa e mercadoria

2.1. Mega-eventos, mega-negócios, mega-protestos. Não há como não reconhecer a conexão estreita entre os protestos em curso e o contexto propiciado pelos intensos e maciços investimentos urbanos associados à Copa do Mundo 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também aos Jogos Olímpicos 2016. De um lado, a represssão brutal e a rapidez com que a mídia e governos tentaram amedrontrar e encurralar os movimentos deveream-se, ao menos em parte significativa, à preocupação em impedir que jovens irresponsáveis e “vândalos” manchassem a imagem do país num momento – Copa das Confederações – em que os olhos do mundo estariam postos sobre o país. “Porrada neles”. A grande mídia deu o tom e o Ministro da Justiça compareceu ao jornal nacional da principal rede de televisao para colocar a Força Nacional à disposição de governos estaduais e municipais.

Mais importante que a reação repressiva, são as transformações que estes mega-eventos imprimem em nossas cidades e a concepção de cidades que eles expressam e atualizam de forma intensa.

2.2. A adoção das diretrizes e concepções neo-liberais que reconfiguraram as relações entre capital, estado e sociedade, a partir da última década do século passado, teve profundas repercussões no lugar e papel da cidade o processo de acumulação. Sob a égide do consenso keynesiano, a cidade deveria ser regida pelas necessidades mais gerais da acumulação e circulação do capital, cabendo ao planejamento (modernista) a tarefa da racionalização e funcionalização espacial através de instrumentos que se generalizaram a partir da 2ª guerra mundial: planos diretores e zoneamento, em primeiro lugar.

Agora, sob a égide do Consenso de Washington, a cidade passa a ser investida como espaço direto e sem mediações da valorização e financeirização do capital. Concebidas enquanto empresas em concorrência umas com as outras pela atração de capitais (e eventos, é óbvio), as cidades e os territórios se oferecem no mercado global entregando a capitais cada vez mais móveis (foot loose) recursos públicos (subsídios, terras, isenções). A guerra fiscal é apenas uma das formas da urbanidade global, que empurra coalizões locais de poder a buscarem articulações a nível nacional e internacional que assegurem a cada cidade – leia-se, aos capitais e capitalistas localizados – uma inserção, mesmo que subordinada, no mercado global.

2.3. O que caracteriza esta nova concepção, neo-liberal, de cidade e de governo urbano? Em primeiro lugar, fiel à inspiração neo-liberal, o novo modelo vai levar ao banco dos réus a pretensão estatista e dirigista do planejamento moderno e seus planos diretores, com sua pretensão de estabelecer os modos, ritmos e direções do crescimento urbano. Na cidade, como na sociedade de modo geral, a intervenção do estado é vista como algo nefasto, que inibe o livre jogo das forças de mercado, que  pelos cânones do liberalismo econômico, asseguraria a alocação ótima dos recursos. Mutatis mutandis, trata-se se abandonar a pretensão compreensiva e dirigista dos planejadores racionalistas e submeter a intervenção do estado às lógicas, dinâmicas e tendências de mercado.Trata-se de adotar, seguindo a fórmula do Banco Mundial, o “planejamento amigável ao mercado” (market friendly planning) ou o “planejamento orientado para/pelo mercado” (market oriented planning).

III. A cidade de exceção e a democracia direta do capital

3.1. Descartemos o plano diretor e o zoneamento, por sua rigidez e contrangimentos ao mercado. No mundo globalizado, ensinam consultores internacionais, precisamos de competição entre cidades, de mecanismos ágeis e flexíveis que permitam aproveitar as “janelas de oportunidades” (windows of opportunities). Ao invés de regulação, negociações caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista francês François Ascher nomeou com a feliz expressão de “urbanismo ad hoc”[5].

No caso brasileiro, esta concepção foi entronizada pelo Estatuto da Cidade ((Lei 10.257, de 10/07/2001, artigo 32), com o nome de “operação urbana consorciada”, que permite a aprovação de projetos que contrariem a legislação urbana vigente.

3.2. Flexível, negocial, negociada, a cidade negócio se atualiza, quase sempre, através de parcerias público-privadas, novas formas de relacionamento entre estado, capital privado e cidade. A contraface da cidade de exceção é uma espécie de “democracia direta do capital”.

3.3.. A cidade dos mega-eventos precipita, intensifica, generaliza a cidade de exceção e a democracia direta do capital. A FIFA e o COI, verdadeiros cartéis internacionais associados a corporações nacionais e interesses locais, recebem o governo da cidade: isenções de impostos, monopólio dos espaços publicitários, monopólio de equipamentos esportivos resultantes de investimentos públicos. São neo-liberais, juram fidelidade ao mercado livre, mas adoram um monopólio!

A Lei Geral da Copa cria uma nova legislação, em violação aberta ao Estatuto do Torcedor. Os monopólios para a concessão de serviços em áreas da cidade ferem os direitos do consumidor. As remoções forçadas de 200 a 250 mil pessoas nas cidades anfitriãs da Copa violam o direito à moradia e à cidade. As populações mais pobres se vêm confrontadas a uma gigantesca onda de limpeza étnica e social das áreas que recebem investimentos, equipamentos e projetos de mobilidade. Os indesejáveis são mandados para as periferias distantes, a 2, 3 ou 4 horas dos locais de trabalho, a custos monetários absurdos e condições de transporte e urbanização precaríssimas.

A cidade neo-liberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de 40 anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um tranporte público precário, espaços urbanos segregados,  Neste contexto, o surprendente não é a explosão, mas que ela tenha tardado tanto.

IV. Resistência, organização e perspectivas

4.1. Desde 2005 estruturou-se no Rio de Janeiro o Fórum Social do Pan. Durante o Fórum Social Urbano, evento paralelo ao Fórum Urbano Mundial, promovido pela Agência UN-Habitat, em 2010, começaram as articulações que iriam originar os Comitês Populares da Copa[6] e a ANCOP – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.

Já em 2011, a ANCOP produziu um extenso e substancial dossiê sobre Mega-Eventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil[7], entregue a autoridades municipais, estaduais e federais. Por toda parte, comunidades e bairros resistem às remoções e denunciam as violências.

4.2. Também são longas e consistentes as histórias e trajetórias do Movimento Passe Livre, do Movimento de Trabalhadores sem Teto, da Central de Movimentos Populares, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia e tantos outros movimentos, em tantas cidades. Embora muitas vezes encerrados em suas realidades particulares ou seduzidos pelas comissões oficiais que nada produzem a não ser fumaça e retórica, estes movimentos trabalham o tecido social de nossas cidades. Tão ou mais importante, a multiplicidade de grupos culturais, em que todas as tribos, através de mil formas de expressão, mais ou menos transgressoras, se insurgem contra um sistema social e uma cidade que lhes negam lugar e passagem.

4.3. São estes movimentos e dinâmicas que vêm agora à tona. Trazem para nossas cidades e nossa esfera pública o frescor do que ainda não foi contaminado pela ideologia do empreendorismo e do individualismo competitivo que pretendem dominar a totalidade da vida social.

Desafiados pela cidade de exceção, pela cidade empresa e pela democracia direta do capital, eles agora as desafiam. Querem outra cidade, outro espaço público. A convulsão social em que o país e suas cidades foram lançados abre extraordinárias possibilidades de interpelação e transformação. Mas nada ainda está decidido. O jogo está aberto. A História nos revisita, nos pisca o olho, e nos lembra que uma outra cidade é possível.



[1] Título retirado de mesa redonda de que participei,promovida pela Instituto de Arquitetura da PUC-Rio.

[2] Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenador da Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos e do Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual.

[3] “Nos sinais que alarmam a classe média, a aristocracia e os infelizes profetas da reação, reconhecemos nosso bom amigo, Robin Hood, a velha toupeira que sabe trabalhar tão bem sob a terra para aparecer bruscamente: a revolução” (Marx, Karl; “Les révolutions de 1848 et le prolétariat: un discours de Marx à une fête de "The People's Paper", 1856 - http://www.marxists.org/francais/marx/works/ 1856/04/km18560414.htm)

[4] Texto escrito em 1930 que integrou o famoso livro vermelho que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural,

[5] “O neo-urbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da norma.” (Ascher, François; Les nouveaux principes de l’urbanisme. La fin des villes n’est pasà l’ordre du jour, Paris, Éditions de l’Aube. 2001.

2001:84)

[6] No caso do Rio de Janeiro foi constituído o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas.

[7](http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=198:dossi%C3%AA-nacional-de-viola% C3%A7%C3%B5es-de-direitos-humanos