UMA ANÁLISE SOBRE A OCUPAÇÃO NO SANTA MARTA

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Entrevista cortada com Itamar Silva, IBASE. Por Eduardo Sá, da redação.

Você colocou em certo momento que qualquer crítica soa como se fosse uma apologia à bandidagem...

Exatamente, nessa dinâmica não tem espaço para a crítica, não tem espaço para você discordar de qualquer coisa. Parece que tudo que você fala é: Ah, então melhor é o tráfico né? Então você é contra a presença do Estado? Não, de forma nenhuma, e eu falo porque a minha posição eu sempre defendi mais Estado na favela. Agora, que tipo de Estado? Que tipo de articulação e diálogo ele estabelece com esses moradores?

Então esse momento é muito difícil, porque coisas positivas estão acontecendo. Mas a minha preocupação é em que medida os moradores vão internalizar essas medidas e de que forma elas serão permanentes, porque os moradores as identificam como as suas demandas e não como um benefício do Estado.

Por exemplo, acho que é tema nessa questão, o muro no Santa Marta. O Santa Marta foi escolhido pelo Estado para ser o modelo de legalidade, então esse é outro tema difícil, é você impor a uma comunidade que ela seja modelo para toda a cidade de legalidade. Numa cidade onde existem tantas outras ilegalidades.

E não é à toa que vem no núcleo da zona sul, atende a toda uma lógica...

Claro, e primeiro é preciso discutir de que legalidade que eles estão falando, saber qual é a amplitude desse conceito que o Estado está trazendo para impor ao Santa Marta. Depois, por que esses moradores têm que ser exemplos para toda a cidade?

É uma espécie de padronização que querem impor a esses espaços, independente da pluralidade interna que cada um contém.

Exatamente. Foram tantos anos, quase 80 anos, de ausência absoluta do Estado e que esses moradores produziram uma dinâmica de convivência, criaram ali a sua vida na sua possibilidade de reprodução. De repente, ele tem que se adaptar a um padrão que eu não sei em que medida ele vai ser capaz de responder.

Quando o Estado escolhe o Santa Marta como modelo, ele o coloca como modelo para tudo, inclusive de controle de favela. O sinal que está sendo dado no Santa Marta com a criação do muro é dizer o seguinte: vamos controlar todas as favelas. Por quê? Porque eu acho que o Estado responde à lógica do medo. Como há um medo na sociedade, medo da violência, medo do tráfico...

Medo do outro...

Medo do outro e a favela sempre existiu como o outro dessa cidade. É de onde vêm os males, de onde que vem a violência, é da onde que vem a pobreza, então toda essa percepção do senso comum, e o Estado acaba respondendo a essa lógica. Na medida que ele bota um muro e diz: não, agora essa população está controlada, fiquem tranquilos porque agora eles estão controlados. E a perversidade disso é que ele usa esse muro como se fosse um benefício para os moradores, quer dizer: nós estamos levando segurança, esse muro vai ser necessário para não construir mais casas; enquanto não é verdade.

O Santa Marta existe há 80 anos e ele não ocupou essas matas, ele não se expande no limite do alto desde o final dos anos 70 e ele tem um limite do lado natural, dado por esse terreno da Prefeitura que é mato, e o outro pelo muro da Forever (empresa vizinha). Quer dizer, a favela está sendo penalizada agora com um muro porque ela se manteve nesse limite.

Ao invés do Estado explorar essa capacidade da favela de conviver com esse meio ambiente e daí descobrir novas formas, avançar na percepção de que é possível conviver nesse ambiente de uma forma inteligente e mais democrática, não: estabelece um muro, porque o sinal não está para dentro, o sinal está para fora.

E perversamente dizendo para as maiorias: não, mas existem muros em condomínios, existem condomínios fechados. Só que é uma lógica ruim também, eu particularmente não acho que esteja certa, ao menos esse não é o padrão de cidade que eu gostaria e pelo qual eu luto. Eu queria uma cidade mais aberta, em que a gente derrube os muros, derrube as grades, em que a gente aprenda a conviver.

Daí dizer: tem DPO (Destacamento de Policiamento Ostensivo) na entrada do morro, tem DPO no alto do morro, tem DPO no meio do morro, é o posto policial, e tem outros. Só que o muro não segura né, se você tiver uma invasão não é o muro que vai definir, se você tiver que avançar não vai ser ele que vai impedir, muros se derrubam. Muros historicamente mais resistentes na Europa foram derrubados, por que você não vai derrubar este muro?

É ruim porque eu acho que a gente perde a oportunidade de ter um olhar mais tolerante para essa cidade, um olhar um pouco mais interativo, então nesse sentido eu vejo que a questão da ocupação e essa tentativa de jogar tudo em cima dessa favela como o exemplo acabado de uma política de controle do Estado é muito negativo.

Isso fica muito claro na linguagem que a mídia utiliza com determinados termos que retratam exatamente a visão da classe média, média alta, e do Estado. Como, por exemplo, "pacificador", simbolizando todo um campo de valores.

Essa cobertura da mídia complica um pouco, porque esse tipo de atuação do Estado vai exatamente na direção do que a mídia tem defendido ao longo de muitos anos. Pouco, dificilmente, ela vai utilizar a palavra remoção, porque isso está meio fora de moda, é da década de 60. Mas a mídia vem batendo firme na questão do controle, da ameaça do crescimento, a favela como invasão.

Se você pega mais uma vez como exemplo: o crescimento do Santa Marta é muito pequeno nos últimos 20 anos. Mesmo outras favelas que estão dizendo que vão colocar muro, são favelas que cresceram muito pouco nos últimos 20 anos. Então, ao invés de pegar esse lado positivo e tentar fazer uma coisa diferente, acaba que aplica nessas áreas a lógica mais coercitiva que é a lógica do controle físico desses espaços.

Nesse sentido eu acho que falta espaço na mídia para a gente debater: Que cidade é essa? Quais são as possibilidades de interação nessa cidade? Como é que se faz o cerzimento dessa cidade? Porque se a gente aceita o termo de cidade partida, mas eu prefiro está integrada ou subordinadamente, geograficamente já entranhada.

Eu acho que há um abismo entre asfalto e favela, que vem sendo alimentado pelo medo, vem sendo reificado por essas ações tipo o muro, então isso é complicado.

Não parece que há um vácuo entre a mídia e a comunidade, dela se propagar segundo os limites da polícia e do Estado?

A mídia tradicionalmente cobriu e continua cobrindo favela pelo olhar da polícia. Desde a década de 70, jornais como A Luta, Notícia, O Dia, jornais que você falava: torce e sai sangue. Então você pegava o Jornal do Brasil e O Globo, essa cobertura de favela era muito rala, a não ser com grandes acontecimentos como remoção, crimes numa coluna pequena, espaços sempre reservados.

Quando ocorreu as mudanças, O Dia fez a sua mudança e deixou de ser um jornal de crime, fazendo coberturas mais abertas com jornalistas que faziam coberturas de favelas, uma galera que subia e tudo mais, mas mesmo assim era um olhar da polícia porque ele sobe sempre com a polícia. Ela sobe sempre com um olhar muito inviesado, como um lugar do crime, um lugar dos conflitos. Até onde eu percebo você nunca teve uma linha de cobertura de favela que fosse o olhar para o seu cotidiano, para as suas questões, seus problemas e possibilidades, menos implicadas com o conflito.

Aí o jornalista diz assim: mas a gente não fica inventando coisas, o fato acontece, o crime está lá, a violência está lá.

Mas proporcionalmente é a minoria.

Mas proporcionalmente não é, porque se não o morador não ia aguentar. Imagina se fosse todos os dias a intensidade da violência como o jornal diz, os moradores não aguentariam. Então tem outras coisas acontecendo para dar uma vida um pouco mais tranquila, agora se você vai procurar só o crime, só o conflito, você vai encontrar em qualquer parte da cidade.

Claro que tem algumas ilhas, alguns momentos, que a mídia dá uma mergulhada tentando trazer outros aspectos, mas eu acho que ainda no geral é um olhar muito policialesco, um olhar muito incriminador dessa favela. E é sempre difícil, não é que você tem que ir lá e dizer que são todos bonzinhos, essa idealização do pobre, eu sou radicalmente contra isso.

Eu acho que a favela tem todos os tipos, ela reflete a sociedade em que a gente está metido, então tem gente legal, tem gente ruim, tem gente chata, gente perversa, tem gente de todo tipo. A favela é também no seu contexto essa diversidade, então essas pessoas produzem também coisas diferentes, produzem momentos legais, momentos de convivência muito interessantes, mas produz também o que não serve. Agora, essa crônica, com essa diversidade, você não vê, sempre a violência tem um sobressalto.

Ah, mas é o que interessa à população, e ele vai atrás da violência. Pode ser, mas é uma coisa que alimenta a outra, e como é que você sai dessa armadilha de que uma coisa reforça a outra? Então é muito mais fácil você ir na onda, a favor do censo comum, mas nem sempre o senso comum está certo. Você tem que tentar também trazer novos olhares, novas possibilidades, para que as pessoas também construam novos caminhos.

aus: http://www.fazendomedia.com/2009/entrevista0422.htm