O ciclo autoimune do PT no Brasil

A preocupação mais importante da esquerda brasileira nos últimos dois anos tem sido denunciar o “avanço conservador”.
| by Moysés Pinto Neto

Nas redes digitais, são postagens inundando a timeline de ameaças de supressão total de direitos, frases absurdas de parlamentares reacionários e bizarros projetos de lei com nítidas violações à liberdade de expressão e ao pluralismo, como a “Escola sem Partido”, que a rigor foi criada para inibir a familiarização com qualquer perspectiva crítica da sociedade alegando que isso constituiria “doutrinação”. Em um programa recente de televisão, no entanto, quando o entrevistador se dirigiu ao filósofo Vladimir Safatle, tentando compreender essa recente popularidade da direita nacional, recebeu uma resposta mais ou menos como: “esses temas conservadores sempre colocaram muita gente na rua. Em 64, já colocaram multidões. O enigma é por que o outro lado, a esquerda, não coloca mais”. De certa forma, o momento em que estamos vivendo está relacionado não só com uma crise política de representatividade que povoa o mundo inteiro e favorece o surgimento de demagogos e medos ancestrais, como vemos nos EUA de Trump e no Brexit, mas também carrega, em especial na América Latina, vestígios de uma crise estrutural do discurso da esquerda, incapaz de reagir de modo consistente à tomada de território por narrativas reacionárias que afrontam minorias políticas e perspectivas de transformação social combinadas com elaborações sintonizadas com o mercado em termos econômicos.

No Brasil, esse processo tem uma íntima relação com a trajetória do Partido dos Trabalhadores nos últimos vinte anos. Nascido de um arranjo entre novo sindicalismo, das Pastorais da Terra e da intelectualidade universitária e contínua aliança com diversos outros movimentos sociais, como movimento negro e MST, o PT incorporava, no seu modo de atuar, um modelo bem próximo do que hoje buscam os espanhois do Podemos com a ideia de “partido-movimento”. Vencedor em diversas metrópoles brasileiras no final da década de 80, o PT buscava a partir do termo “popular” a democratização radical da sociedade e gestão pública conduzida de baixo para cima, em confronto tanto ao modelo autoritário e tecnocrático da Ditadura Militar quanto da gestão plutocrática que caracterizava o neoliberalismo. O orçamento participativo foi a iniciativa mais conhecida desse espectro de ações.

No entanto, as sucessivas derrotas para a Presidência e o projeto de conquistar o poder gradualmente foram construindo uma face dupla, mesclando o partido de bases e tendências a uma direção verticalizada, centralizadora e pragmática. Essa ambivalência foi a principal característica do lulismo: tratava-se de incorporar as tensões políticas para o aparelho de Estado e deixá-las em banho-maria, acenando ao mesmo tempo para as oligarquias nacionais e para os setores da resistência. Para muitos, essa estratégia de “conciliação de classes” teria sido a traição que fez desmoronar o projeto da esquerda. No entanto, essa análise pressupõe a aplicação de conceitos morais à política. É preciso verificar se, em 2002, Lula havia sido eleito para uma confrontação de classes e se isso era viável politicamente naquele momento. E a verdade é que a estranha estratégia, até certo momento, funcionou. As políticas sociais produziram efeitos sinergéticos que despertaram os setores mais vulneráveis da sociedade brasileira e o lulismo, mesmo funcionando sobre um “pacto conservador”, alargou as potencialidades do projeto Brasil. Para muitos, tratava-se de aproveitar o kairos e, considerando a adesão do centro político, que passou a robustecer os índices de popularidade de Lula e do PT, formular um modelo alternativo de desenvolvimento que não fosse a simples repetição do desenvolvimentismo e aprofundamento do capitalismo e da sociedade do consumo (marca registrada do lulismo ao garantir, pelos programas sociais, o acesso dos mais pobres a bens de consumo como celular e automóvel).

O arranjo improvisado do lulismo, forjado a partir de choques contingentes como o escândalo do Mensalão e a cooptação ao mercado financeiro balanceada pela presença de figuras emblemáticas da esquerda em outros ministérios, conseguia produzir o melhor dos mundos para o PT: de um lado, podia etiquetar o rótulo de paranoica à direita que o associava ao bolivarianismo de Chavez, mostrando a manutenção da ordem e as concessões como símbolo de uma política moderada; de outro, mobilizava de baixo para cima a sociedade, fomentando movimentos sociais e traçando uma identificação com a classe emergente que encontrava no mandatário, Lula, a personalidade carismática capaz de mobilizar os afetos para a ascensão social daquele que enfrenta preconceitos e a dura luta pela sobrevivência em um país tão desigual. O mercado financeiro é o inimigo, mas quando a The Economist e as agências de rating recomendam o Brasil, comemora-se.

O governo tecnocrático de Dilma Rousseff irá afunilar o projeto, eliminando as ambivalências do lulismo. Enquanto Lula mantinha os antagonismos em potência, Dilma simplesmente concedia quase todos os espaços para as oligarquias a fim de preservar como núcleo duro a política econômica desenvolvimentista. O projeto do PT torna-se unidimensional, ligado ao imaginário de player e potência dos BRICs e dirigido de cima para baixo. Os acontecimentos de junho de 2013, em particular, quando as ruas, sintonizadas com os movimentos mundiais pós-2011, se inundaram de pessoas protestando contra o modelo urbanístico que vinha sendo implementado a partir da pauta do transporte público, mostra a definitiva separação do PT em relação à sua fração movimento. Setores “governistas” colocam-se contra os movimentos sociais emergentes e favoráveis à repressão policial. O PT torna-se um partido da ordem, alinhado ao resto do sistema político na defensiva contra as ruas. Nem a mobilização da multidão é capaz de fazer o PT se deslocar para uma política de ruptura, um projeto alternativo à conciliação com as velhas oligarquias.

Nas eleições de 2014, no entanto, o PT mobiliza pela última vez seu lado “movimento”. Diante da possibilidade de vitória de Aécio Neves, as bases se remobilizam em torno a um “apoio crítico”, no qual a esperança que o projeto desenvolvimentista se torne mais aberto e confronte as oligarquias decide, por pequena diferença de votos, o pleito. Além disso, a eliminação no primeiro turno da candidata centrista Marina Silva precisou de uma gigantesca campanha de difamação comandada por um discurso de ultraesquerda que convocava o fantasma do petismo-movimento contra a candidata “neoliberal verde”. Votar na esquerda torna-se uma questão moral. No entanto, a essa mobilização segue imediatamente um governo que adere ao discurso de austeridade e nomeia um ministério fisiológico e conservador. O episódio é abertamente nomeado de “estelionato eleitoral”. A última chance de transformações estruturais, depois de 2008, 2010 e 2013 – quando a popularidade era alta e a base social demandava mudanças – é desperdiçada. Está dada a crise política.

A ambivalência que favorecia o governismo petista passa a ser venenosa. As concessões às oligarquias não capitalizam o governo, já que contrastam com o discurso cada vez mais à esquerda da base. O PT-movimento alastra-se em bolha para uma fração maior da sociedade ao longo de 12 anos, mas torna-se impermeável ao centro pelo identitarismo de esquerda. Isso permite aos setores mais conservadores se aproximarem do centro, usando o discurso trivial contra a corrupção como motor de indignação. Por outro lado, o PT-movimento se vê cada vez mais paralisado diante de ações governamentais que, na prática, representam decisões conservadoras a desmentir a militância. Está constituída a estratégia que irá enterrar o PT na crise política: concede-se cada vez mais às oligarquias sem capitalizar e, ao mesmo tempo, radicaliza-se à esquerda o discurso sem que leve à ação, dadas as contradições com as práticas concretas do governo. A esquerda, dividida entre apoio crítico e oposição, paralisa-se para defender o indefensável e perde as ruas e a maioria para a direita. Se a fração movimento é usada para sustentar uma base fiel que, apesar de tudo, segue apoiando o partido, ela também serve para que a direita nunca normalize o PT como uma entre outras forças institucionais. Assim, o partido perde dos dois lados: não consegue sustentar a fração movimento pela contradição entre discurso e ação e nem a fração partido da ordem porque, na sua fragilidade, os setores oportunistas que haviam se aliado deixam-no naufragar sozinho, abandonando o barco. Numa estratégia autoimune, destruiu-se por dentro, fortalecendo as oligarquias e movimentos neoconservadores enquanto enfraquecia as políticas de esquerda.

Essa indefinição perpetua-se hoje em dia. Enquanto a militância-movimento associa o impeachment a um golpe de estado, a alta cúpula já reorganiza os planos políticos partidários, tanto suavizando a expressão quanto definindo uma estratégia que suporta aliança com os golpistas, tornando difícil que a narrativa seja levada a sério. Diante dessa fissura, a esquerda segue paralisada. O PT está mais próximo do burocratizado PSOE que do Podemos, embora queira ocupar o espaço de ambos – simultânea e contraditoriamente -- na política nacional. Em um momento de ampla deslegitimação do sistema político, nada é proposto senão o engajamento em uma polarização artificial que pouco condiz com a forma concreta como se davam as decisões governamentais. O dissenso político é reduzido ao emblema identitário sem conteúdo.

Resta a resistência da esquerda autonomista, surgida em 2013, que luta em ocupações e estratégias micropolíticas que possam romper com o instituído. Enquanto o PT continuar marcado por essa ambivalência, ele estará ocupando o espaço pelos dois lados, inibindo a formação de novos blocos políticos institucionalizados e aumentando a ilegitimidade do sistema político diante das ruas. Para ressurgir, a esquerda brasileira precisará fazer o luto do ciclo da Nova República e reposicionar estratégia e programa em novas bases, rompendo com os arranjos que o PT ajudou a consolidar nos últimos 15 anos. A ruptura com velhos símbolos demanda a coragem da verdade. Esse é o desafio da esquerda autonomista que hoje é uma força potente no cenário nacional, mas contempla os mesmos dilemas e perplexidades debatidos no resto do mundo.