Horizonte Politico Brasileiro

Uma analisis da Verena Glass
| by Verena Glas

Em março do ano de 2014, desencadeou-se no Brasil uma devassa de proporções inéditas nas relações entre agentes públicos e privados, cunhada pelo Ministério Público Federal como “a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro” que o país já viveu. A chamada Operação Lava Jato, nascida a partir do monitoramento de transações financeiras ilegais que envolviam uma casa de câmbio em Brasília localizada em um posto de gasolina – onde comumente encontramos os lava-jatos, sistema de lavagem rápida de automóveis; daí o nome -, desvendou um complexo esquema de corrupção, lavagem de dinheiro e pagamentos de propina envolvendo a estatal petroleira Petrobrás, grandes empreiteiras e políticos de ao menos seis partidos.

De acordo com a Policia e o Ministério Público Federal, esquemas de superfaturamento e suborno em contratos da Petrobras, com pagamento de propinas a altos funcionários da estatal, a partidos e a políticos da base do governo, envolveram mais de 700 obras de infraestrutura e 170 empresas, entre as quais todas as grandes empreiteiras brasileiras. As investigações acabaram abarcando também empreendimentos energéticos executados pelos mesmos empreendedores, como a hidrelétrica de Belo Monte e a usina nuclear Angra 3, bem como projetos na América Latina e na África.

Do ponto de vista político, o emaranhado público-privado de crimes e desvios cívicos, éticos e financeiros desvelados pela Lava Jato não chegou a impedir a reeleição da presidente Dilma Rouseff no final de 2014 – apesar de marcar a ferro a candidatura da petista com a pecha da corrupção -, mas paulatinamente corroeu a já abalada confiança da população no Executivo, no Legislativo e no sistema partidário. Vitrine mais exposta da indignação popular por ser o “partido do poder”, o PT teve vários expoentes investigados, acusados e/ou presos. Mas também o Parlamento teve seus dirigentes maiores, os presidentes da Câmara e do Senado (ambos do PMDB, principal partido da base aliada do governo), implicados em denúncias de propina. Assim que ao eleitor não foi sobrando muito a que pudesse se agarrar sua esperança ou seu respeito.

Em 2013, o Brasil foi chacoalhado por um grito catártico por mudanças estruturais. O fenômeno que ficou conhecido como Junho de 2013, e que levou milhões às ruas para externar descontentamentos, explodiu como um impulso libertário. Ignorada politicamente pelo governo, porém, no ano seguinte a rebeldia insurgida se transmutou em um profundo reacionarismo, cuja principal expressão se deu nas urnas ao ser eleito o mais conservador dos Parlamentos desde o golpe militar.

No inicio de 2015, um misto de esquizofrenia moralista – marcada por clamores pelo retorno da ditadura – e de ressentimento pela vitória de Dilma sobre o candidato da direita, Aécio Neves, escancarou um ódio de classes que, depois de uma breve retomada das ruas, cristalizou-se numa renitente campanha ideológica pelo impeachment da presidente. Por outro lado, a crise ética corporificada pela Lava Jato, acompanhada de uma profunda crise econômica que se escancarou nos primeiros meses do ano e que atingiu frontalmente a sensação de bem-estar social gerada pelos programas e políticas petistas, deixou ainda mais perplexa a esquerda clássica e suas bases históricas. Principalmente porque as respostas do governo à débâcle financeira do país assumiram contornos tão conservadores quanto os presumivelmente adotados por uma gestão de direita.

Assim que o Brasil 2015 começou com uma inflação corcoveante, um ajuste fiscal impopular, aumento dos preços de serviços básicos, contingenciamentos nas pastas e programas sociais do governo, e desemprego crescente. Concomitantemente deu-se a paralisia ou falência de obras envolvidas nos escândalos da Lava Jato, cancelamento de planos de investimentos em infraestrutura, ameaça de interrupção de contratos com empreiteiras inidôneas, e, consequentemente, demissões massivas na construção civil.

O maior imbróglio brasileiro dos últimos tempos tomou tais proporções que movimentos sindicais e sociais, com o propósito de defender a soberania nacional e a Petrobrás, chamaram também à defesa das empreiteiras corruptas – setor denominado de “Engenharia Brasileira” - em nome da sobrevivência dos seus trabalhadores, enquanto nos territórios rurais e urbanos, onde a atuação destas mesmas empresas tem impactado centenas de comunidades, afetados por elas e/ou ameaçados por seus projetos vislumbraram uma réstia de esperança em sua possível derrocada.

Em meados do ano, enquanto as investigações de corrupção seguiam seu rumo - assim como os apertos econômicos -, a popularidade do governo despencou ao nível mais baixo da história recente. Acuado pela pressão da direita – que continua no firme propósito de emplacar o impeachment da presidente Dilma -, o governo optou por aprofundar a ortodoxia liberal-desenvolvimentista que veio paulatinamente adotando desde o inicio da gestão petista, intensificando, ao mesmo tempo, o movimento de concessões políticas e econômicas aos setores mais conservadores do tabuleiro político nacional.

Levante reacionário e a esquerda de joelhos

Neste contexto conturbado, uma das agendas históricas da esquerda brasileira que mais tem sofrido ataques e retrocessos é sem duvida a dos Direitos Humanos (econômicos, sociais, culturais e ambientais). Em função da opção por uma economia escorada prioritariamente no mercado primário-exportador, o governo petista desde o início demonstrou pouca empatia com as pautas ambientais e territoriais das populações tradicionais e vulneráveis no campo e na cidade, quando contrárias a grandes projetos infraestruturais e/ou produtivos (minerários, petroleiros, rodoviários, hidroviários, energéticos, agropecuários, agroenergéticos, urbanísticos, etc).

O abandono e/ou ataque às comunidades resistentes nos territórios rurais e urbanos, e os concomitantes investimentos públicos de alta monta em “projetos produtivos”, aprofundou em efeito cascata a valorização capitalista destes territórios, o acirramento da disputa por eles e a violência dos conflitos; fermento poderoso para o crescimento de um conservadorismo profundamente reacionário, corporificado no Congresso Nacional pela poderosíssima bancada BBB - Boi, Bíblia e Bala (ou KKK – Kuh, Kirche und Kugel), representante dos interesses do agronegócio, das igrejas evangélicas e do setor armamentista.

O recuo do Estado na proteção e implementação de políticas sociais estruturantes – como demarcação de terras indígenas e quilombolas, a política de reforma agrária, os investimentos em alternativas produtivas, etc, que sofreram de uma crescente paralisia a partir do segundo mandato de Lula -, aliado exatamente à priorização do setor produtivo primário, levou a uma sobrevalorização das terras agriculturáveis e passiveis de exploração mineral e energética que desencadeou, na Bancada BBB (com apoio implícito ou explícito do governo), uma verdadeira cruzada contra direitos constitucionais das populações indígenas e tradicionais, bem como contra a legislação ambiental que ainda regula minimamente as atividades extrativas.

Assim, ao mesmo tempo em que o país é palco de sucessivos recordes de assassinatos de indígenas e lideranças sociais nos territórios em conflitos ambientais e territoriais, a atuação de órgãos governamentais como a Funai (indígena) e o Incra (fundiário), mesmo que extremamente débil, vem sendo atacada ferozmente no Congresso, com previsão de aprovação de medidas que praticamente anulam, por um lado, a garantia de direitos das populações, e por outro liberalizam os procedimentos reguladores de projetos com impactos socioambientais, como os licenciamentos ambientais.

Ainda sob a regência da Bancada BBB, avançam no Parlamento propostas como a redução da maioridade penal de jovens em conflito com a lei (diminuindo de 18 para 16 anos a imputabilidade criminal), a liberalização do uso de armas, a criminalização extrema do aborto, e novos instrumentos de repressão através da Lei Antiterrorismo.

Não obstante o governo tenha se manifestado timidamente contra aspectos pontuais destas propostas, a dependência do apoio dos setores conservadores – na maioria, integrantes de sua base aliada – na batalha contra o impeachment, contra maiores implicações nas investigações de corrupção e a favor de suas propostas impopulares de ajuste fiscal, tem levado a presidência e seus ministros a permanecer majoritariamente impassíveis frente aos protestos sociais, e lenientes diante de graves delitos do setor produtivo.

Exemplo disso foi a resposta à maior catástrofe ambiental do país ocorrida no início de novembro de 2015 com o rompimento da barragem de dejetos da mineradora Samarco (de propriedade da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Billiton) no município de Mariana, em Minas Gerais. Mesmo diante do comprovado descuido das empresas que levou à aniquilação de todo um povoado e do Rio Doce (que atravessa os estados de Minas e Espírito Santo), a primeira reação da presidência foi assinar um decreto que considerou o crime (rompimento de barragem) um “desastre natural” e negar negligência dos órgãos públicos e das empresas responsáveis.

Da mesma forma, o Ibama, órgão ambiental do governo que responde pelo licenciamento de grandes obras, um dia após multar em R$ 5 milhões os construtores da hidrelétrica de Belo Monte, no estado do Pará, pelo não cumprimento de condicionantes essenciais para a mitigação de danos às populações afetadas pela usina, concedeu aos mesmos operadores a autorização final para o início do seu funcionamento.

A perda dos referenciais éticos e ideológicos na lida da política estatal no governo petista atingiu frontalmente a esquerda brasileira – tanto a partidária quanto intelectuais e organizações da sociedade civil. A condescendência com as práticas moralmente condenáveis do governo e do Partido dos Trabalhadores em nome da permanência do seu projeto político no poder, frente à ameaça simbolizada pela “volta da direita”, criou uma nova cultura de “adaptação às circunstâncias” que, aos poucos, passou à aceitação e defesa de um modelo de desenvolvimento que, sob o governo anterior, era taxativamente condenado como nefastamente neoliberal.

Neste sentido, como já mencionado, a defesa do extrativismo petroleiro, por exemplo, passou a ser considerada estratégica e questão de soberania nacional por parte dos movimentos sociais cujas bases, nos territórios, continuam sofrendo com os projetos de mineração, reflorestamento, energia e grandes obras infrastruturais essenciais para a existência do setor petroleiro (que, além dos poços de exploração nos territórios agrícolas e pesqueiros de inúmeras comunidades tradicionais, inclui portos, estaleiros, dutos, refinarias, indústrias químicas, etc).

Esta inversão de perspectiva levou o setor sindical, por exemplo, a defender as empreiteiras contra trabalhadores insurgidos (por motivos de maus tratos) na construção das hidrelétricas do Rio Madeira e de Belo Monte, sob o argumento de que a energia é essencial para a indústria automobilística geradora de postos de trabalho. Também levou este mesmo movimento sindical a criticar duramente a juventude que protestou nas ruas em junho de 2013 – alvo, aliás, de vários intelectuais de esquerda e de outros movimentos sociais – por considerar temerários os reclames contra o “governo do povo” em um momento já de grande fragilização da sua representatividade.

Não se levou em conta, na perspectiva daquela esquerda, que, além do preço da condução, grande parte dos protestos focou os brutais despejos forçados que viabilizaram as mais tenebrosas transações imobiliárias da e para a Copa do Mundo, a repressão violenta das resistências nos bairros e favelas do país, a imoralidade dos gastos públicos em estádios futuramente inúteis em detrimento de outros investimentos sociais, etc.

Apesar de já distante, Junho de 2013 escancarou uma dura realidade uma vez que, em nome da defesa de um projeto de governo já indefensável, vários movimentos impediram deliberadamente suas bases de participar ou mesmo discutir aqueles protestos: o conservadorismo engoliu a direita e a esquerda, muitas vezes tornando difícil, difusa e embaçada a distinção entre ambas no que tange suas bandeiras e seus interesses.

Então a pergunta que se coloca é: o que é esquerda? O que é ser de esquerda? Quem a esquerda defende? O que defende? O trabalhador, que sob Lula viu aumentar seus rendimentos e poder de compra, e se inseriu na categoria de consumidor, mas hoje defende a redução da maioridade penal, como enquadra-lo nesta categorização?

E os povos das florestas, indígenas, pescadores, ribeirinhos, quilombolas, que não mantêm relações de trabalho e assalariamento, mas que lutam desesperadamente contra as investidas do grande capital sobre seus territórios, são parte da classe trabalhadora? Suas lutas de resistência são de esquerda? Sua defesa do meio ambiente, que nunca esteve no cardápio da esquerda tradicional, agora entra? Ou, como avalia o governo, esta parcela da população e suas demandas são apenas obstáculos ao desenvolvimento do país?

Atualmente, o espectro partidário não tem sido capaz de aportar respostas. Não há algo que substitua, neste universo, o que foi a história do PT nos anos 1970 e 80. No âmbito dos grandes movimentos sociais nacionais e do movimento sindical, também não há sinalização de que a paralisia que se abateu sobre eles será, a curto prazo, rompida por novos impulsos criativos e aglutinadores. Assim, talvez venha mesmo das lutas de resistência nos territórios – rurais e urbanos -, protagonizadas pelos que se negam a ser eternamente vítimas, um sopro de frescor na aridez política dos nossos tempos. Ao menos é nestas lutas que boa parte de uma antiga esquerda sofrida e uma nova esquerda libertária tem investido sua afetividade. O que já é um bom recomeço.

*Verena Glass é jornalista e coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo